
Downloadeie (corrigido)
"Havemos de favorecer e ajudar aos necessitados e desvalidos. Hás de saber, Sancho, que este, que vem pela nossa frente, o capitaneia o grande Imperador Alifanfarrão, senhor da grande Trapobana; e estoutro, que marcha por trás das minhas costas, é o do seu inimigo el-rei dos garamantes Pentapolim do Arremangado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço direito nu. Este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está enamorado da filha de Pentapolim. Seu pai não quer dá-la ao rei pagão”.
Acabei de voltar do banheiro. É engraçado, porque eu já estou cansado de saber que uma das minhas características mais estranhas é que eu sou condicionado a pensar sobre as coisas no banheiro. Principalmente durante o banho. Parece que sentir a água esquentando minha pele abre minha percepção para novas idéias. Acontece que pensar nem sempre é o mesmo que lembrar. E acontece também que esqueço sempre o que pensei como se a toalha enxugasse a memória e não deixasse nem as lembranças do chuveiro.
Mas agora a pouco, antes de voltar do banheiro, lembrei. E decidi vir correndinho para cá para não mais esquecer. E tenho que escrever rápido para que as lembranças não escapem. E já estou sentindo-as imergirem. Mas vamos lá, vou fazer um esforço.
Depois que me espantei no espelho, pensei em como começar um conto, uma crônica, um texto qualquer. Sou craque em começar textos. Poderia ser bem sucedido se houvesse mercado para “iniciadores de texto”, pois já li várias vezes que essa tal da primeira frase é sempre um tormento para alguns escritores. Para mim o tormento vem depois, quando tenho que conseguir convencer àqueles que me lêem de que eu realmente estou querendo dizer alguma coisa.
De modo que eu pensei em começar algo assim:
“Esses dias mesmo, acabei estacando no seguinte repente: achei engraçado a expressão ´primeira pessoa´ que li num fragmento de xerox duma aula dum cursinho que tem perto de casa. Pensei: ´por que nós temos que nos referir a nós mesmos como sendo primeira pessoa?´ E percebi que estava cometendo um paradoxo, uma contradição em si, porque o pronome “nós” não é primeira pessoa. E como não sou um ás em gramática, nem sei que diabo de pessoa somos “nós”. Primeira pessoa sou eu. Você, por exemplo, é uma flexibilização do pronome Tu, que também não é primeira pessoa; é segunda. Ele é terceira. E acaba por aí, mesmo que na mesa de bar tenha mais alguns amigos. Todos eles, menos você, serão terceiras pessoas. Assim, gramaticalmente, minhas relações ficam reduzidas a três pessoas sempre: eu, você e ele ou ela. Uma outra coisa engraçada é que destas três pessoas que existem, apenas uma concorda com o gênero: a terceira; nas outras duas não se grafia o feminino e o masculino. Eu sou eu, posso ser mulher ou homem. Tu ou você, mesma coisa. Agora, a terceira pessoa é ele ou ela. Isto no português porque no inglês parece que todo mundo é assexuado.
O que acho besteira – embora entenda que é preciso certa ordem nisso tudo – sou eu ser a primeira pessoa na hierarquia das pessoas. Por quê eu venho em primeiro lugar? Essa regra não respeita nem a ordem de chegada ao mundo, porque tão logo nasço já sou eu, isto é, primeira pessoa. Nem bem cheguei e sou o primeiro da fila e as outras vêm depois de mim. E eu ainda nem sei que língua vão me ensinar a falar.
As pessoas dão muito crédito aos primeiros lugares. Eu recuso ser o primeiro, me recuso a me tomar como referência, como ponto de partida. Prefiro me fundir
Olha só. Comecei um texto e acho que terminei. O desfecho foi feito às pressas. Tenho que aprender a ser mais conciso. Mas não é fácil.
Considere-se a afirmação seguinte: “Os países atrasados anunciaram um pacote de ajuda aos miseráveis.” Considere-se agora esta outra: “Os países emergentes anunciaram um conjunto de medidas de ajuda aos excluídos.” Qual a diferença entre uma frase e outra? Nenhuma, quanto ao conteúdo. Mas como soa mais benigna a segunda, expurgada da crueza selvagem da primeira... A primeira, dita num salão, choca como palavrão. Soa como vitupério de rameira em rixa de bordel. A segunda deleita como solo de clarineta. Parece discurso de doutor em noite de entrega de título honoris causa. Por isso, governa-se com a segunda.
Estamos falando da arte de se valer dos eufemismos. Quando morre a mãe de alguém, é grosseiro anunciar-lhe: “Sua mãe morreu”. No mínimo, a pessoa dirá que a mãe “faleceu”. Também poderá dizer que “desapareceu”. Ou então, se ainda achar pouco, que “feneceu”, delicado verbo emprestado às flores, com o que a morte se apresentará cheirosa como lírio, colorida como cravo. O eufemismo, como a hipocrisia, é a homenagem que, na linguagem, o vício presta à virtude. Soa mais virtuoso confessar a existência de “relações impróprias” com alguém, conforme fórmula celebrizada pelo presidente dos Estados Unidos, do que dizer que se cometeu adultério.
Na segunda das frases acima estão reunidos três dos eufemismos mais correntes na vida pública. Dois deles são universais – “emergente” para país atrasado e “excluído” para miserável. O terceiro, “conjunto de medidas” em lugar de “pacote”, fala exclusivamente à sensibilidade brasileira e, mais ainda, do atual governo brasileiro. “Emergente” para país atrasado ou, para ser mais exato, remediado, é a última de uma longa linhagem de fórmulas classificatórias dos países segundo sua riqueza. Até a primeira metade do século, quando ainda não se carecia de eufemismos, nesta área – ou, caso se prefira, de linguagem politicamente correta – os países eram simplesmente ricos e pobres, quando não metrópoles e colônias. Com a adoção do conceito de “desenvolvimento”, depois da II Guerra, passaram a ser “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”. Mais adiante, para não achincalhar a todos, indistintamente, com a pecha infamante de “subdesenvolvido”, premiou-se os melhores com o gentil “em desenvolvimento”. Tais países não eram mais “sub”, não estavam mais tão por baixo. Nos últimos anos, substituiu-se o “em desenvolvimento” por “emergente”, palavra que igualmente se opõe ao “sub”. São países não mais submersos, mas que emergem. Já põem a cabeça para fora.
“Excluídos” para designar os miseráveis é o coroamento de uma linhagem mais longa ainda de palavras com as quais se tenta melhorar a condição das pessoas na rabeira da escala social. Já se recorreu a peças do vestuário, por exemplo. Na Revolução Francesa havia os “sans-culottes”, os desprovidos do tipo de calça – o “culotte” – de uso dos nobres. Na Argentina de Perón e Evita consagrou-se o “descamisado”. Também já se falou – e se fala ainda – em menos favorecidos, despossuídos, humildes... “Excluído”, dirá o leitor, tem um sentido diverso. É aquele que o sistema produtivo exclui. Alguém pode ser pobre, porque mal remunerado, mas incluído, porque tem emprego e função na produção. Se o pobre pode não ser excluído, no entanto, dificilmente alguém será miserável e incluído. O que leva a concluir que, na prática, o excluído quase sempre se confunde com o miserável.
Resta falar da sorte da palavra “pacote”. “Pacote” nasceu inocentemente, na administração da economia, talvez por imitação das agências de turismo, que quando vendem passagens e hospedagem, tudo junto, vendem um “pacote”, para designar não uma, mas várias iniciativas adotadas ao mesmo tempo. Nasceu nesse sentido e nele devia permanecer: o de uma pluralidade de medidas, em vez de uma única. Sabe-se que o governo, para enfrentar a presente crise, adotará uma pluralidade de medidas. Por que então o horror à palavra pacote, anatematizada repetidas vezes pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que, ainda num discurso na semana passada, garantiu que “não existe nada de pacotes”?
Ocorre, circunstância fatídica, que os pacotes foram introduzidos na política brasileira pelo regime militar e costumavam ser baixados sem aviso nem consulta. Essa característica acabou contaminando o conceito de pacote, e eis-nos então de volta à anódina expressão “conjunto de medidas”, com a qual se pretende conferir a tais medidas, por maldosas que sejam, um atestado de bom comportamento. O eufemismo, desde sempre, foi parte integrante tanto da arte de governar quanto da de administrar as relações entre as classes sociais. No Brasil do século passado não havia escravo. Havia o “elemento servil”. O que isso tudo quer dizer é que quando é difícil modificar a sociedade, ou o governo, modifica-se a linguagem. Se não conseguimos, governo e sociedade, ser mais justos ou mais democráticos, sejamos, pelo menos, mais finos.
(Roberto Pompeu de Toledo – Revista VEJA – 14.10.98)
Outro personagem do Marco Luque! O mesmo humorista do Jackson Five, o motoboy!!!