

Agora sim, o disco. Downloadeie- o.
"Havemos de favorecer e ajudar aos necessitados e desvalidos. Hás de saber, Sancho, que este, que vem pela nossa frente, o capitaneia o grande Imperador Alifanfarrão, senhor da grande Trapobana; e estoutro, que marcha por trás das minhas costas, é o do seu inimigo el-rei dos garamantes Pentapolim do Arremangado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço direito nu. Este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está enamorado da filha de Pentapolim. Seu pai não quer dá-la ao rei pagão”.
Tinha tudo para ter nascido como um dia qualquer. Acordei ao mesmo horário, da mesma forma e contra a mesma vontade de sempre. Fiz o que tinha que fazer relacionado às higienes matinais obrigatórias de todos os dias, inclusive com inegável surpresa cedi ao imperativo de me render a uma das que mais sinto relutância, que é passar o fio dental. Não tomei café, como também de costume, e saí. Foi pouco depois disso que fui interrompido na minha caminhada por um lampejo. Estaquei imediatamente. Olhei para os lados, teimando o movimento da cabeça contra o maldito torcicolo que custava a sarar espontaneamente, mas não vi sinal algum de nuvem, tampouco de qualquer coisa que pudesse sugerir a probabilidade de uma tempestade, sequer de uma garoa. Então, só poderia ter sido auto-organicamente-produzido, o que eu fui constatar que sim, posteriormente.
Tal qual a idéia fixa que assolou e levou Brás Cubas à morte, aquele clarão que eu jurava ter visto tinha a força de beijo roubado e vinha acompanhado daquela sensação de sobressalto, comum quando a gente decide resgatar da poeira e da inutilidade aquele calçado velho que há anos não usamos e somos surpreendidos com a dor causada pela picada do inseto que dali tinha feito sua morada.
Confesso que, a despeito da força intensa com a qual aquele pensamento havia me abatido, ele ainda estava muito difuso, confuso, diluído. Não bastasse o desconcerto que de imediato tinha me causado, este sentimento ainda me forçaria a um trabalho mental exaustivo – dada a minha inata intelectual-laboriosa preguiça -, cuja perspectiva de sucesso como resultado não era das mais animadoras.
Normalmente, em situações como estas, eu seria facilmente tragado pelo peso da contingência da rotina laborial e postergaria o esforço “decifratório” a que aquela sensação me tinha condenado. No entanto, fui tomado por uma necessidade incomum de sair correndo, dobrando as esquinas às cegas sem me importar para onde estava indo. Nem ao menos me importei com as pessoas com as quais trabalho. Qual é? Estava passando por um momento importante, não ia desviar minha atenção para algo como meu trabalho. Isso eu fazia todos os dias sem pensar. Qualquer coisa, depois do arrebatamento e de recuperar o fôlego era só ligar ao escritório e informar com um falso pesar na voz de que iria me atrasar, mas que não tardaria muito.
Só quando, de fato, parei foi que percebi que o que antes tinha sido um clarão, começava a se concentrar em uma forma de luz mais distinguível, o que era difuso, diluído era como que atraído por uma força concêntrica que o condensava e o dava contornos mais nítidos. Comecei pouco a pouco a compreender o sentido de tudo. Absorto em meus pensamentos, não tinha de todo, porém, parado de caminhar a esmo.
Os contornos foram gradativamente se definindo e eu já antevia o resultado, eu já percebia de antemão que o que me sobressaltara era uma constatação, o resultado de uma avaliação involuntária autoprovocada da minha vida que me forçaria a tomar uma atitude drástica. É claro, porque, até aquele momento, minha vida não tinha sido digna de nenhuma narração. Embora jovem, não tinha passado por nenhuma verdadeira crise, por nenhum verdadeiro e absoluto abatimento, por nenhuma profunda dor. Os momentos de alegria eram banais, como de todo mundo. Era como se ao nascer me fosse dado o impulso inicial e eu fosse percorrendo os anos da minha vida como se deslizasse por uma superfície não perfeitamente lisa, com pequenos acidentes e leves rugosidades, por certo, mas mesmo assim o que contava mais nisso eram os adjetivos e não os substantivos. Sem dificuldades, com relativos sucessos e sem muitos esforços tinha até ali avançado algumas unidades de medida na linda da vida. Nem mesmo uma grande paixão me arrebatara para que me entregasse de todo a ponto de matar dragões e avançar sobre um rebanho qualquer de cabras.
Foi envolvido nesses pensamentos que tomei a decisão que iria mudar minha vida. Tinha definitivamente firmado um propósito e a ele seguiria até o fim. Como sinal que expressasse a minha decisão e também como uma forma de provocação a mim mesmo, estaquei da mesma forma que tinha feito quando do aparecimento do clarão, como que para informá-lo de que ele já poderia submergir para o lugar de onde tinha vindo, pois o seu propósito tinha sido, afinal, um sucesso. Bati um pé no chão como se estivesse nele fincado o pé. Foi quando me dei conta de que realmente tinha andado esse tempo todo em que refletia, e me encontrava - agora sim reconhecia - exatamente no meio de uma rodovia e que pela minha esquerda e diretamente sobre mim vinha o carro dirigido por um motorista que, mesmo insone, havia cochilado no exato momento em que me jogava já sem vida contra a proteção lateral da estrada.
Educado no Colégio Caraça, o coronel Venâncio Figueira, fazendeiro em Uberaba, havia se contaminado, pouco a pouco, de filosofia e de latim, de modo a preocupar-se, mais do que o necessário, com os graves problemas da vida. Manuseador quotidiano de certos autores profanos, ele se punha, às vezes, a pensar, no alpendre da sua casa de fazenda:
- Sim, senhor! Esses filósofos têm razão! Este mundo é tão desigual, tão cheio de injustiças, de irregularidades clamorosas, que qualquer mortal, encarregado de fazê-lo, o teria feito melhor!
E acentuava, melancólico:
- Este mundo está muito mal feito!...
À noite, porém, reunida a família na sala de jantar, o velho fazendeiro arreganhava os óculos no nariz, tomava a "Bíblia", chegava para mais perto o lampião de querosene, e punha-se a ler, pausado, o "Livro de Jó". E começava, de novo, a meditar, diante destas palavras do capitulo 38:
"4. Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência.
"25 - Quem abriu para a inundação um leito, e um caminho para os relâmpagos e trovões?
"41 - Quem prepara aos corvos o seu alimento, quando os seus filhotes implumes gritam a Deus, e andam vagueando por não terem de comer?"
Certo dia, dominado pelas idéias reacionárias bebidas em autores modernos, passeava o coronel pelo pátio da fazenda, quando, ao ver as andorinhas que voejavam por cima do gado, voltou novamente a raciocinar:
- É isso mesmo, não há duvida! O mundo é muito mal arranjado. Aqui está, por exemplo; este boi. Porque, tendo ele chifres, patas, orelhas, e sendo tão forte, há de viver sempre na terra, a arrastar-se pelo solo, quando aquela andorinha, que não tem nada disso, se locomove, rápida, ligeira, dominando os ares?
Nesse momento, porém, uma andorinha que lhe passava por cima, deixou escapar alguma cousa que lhe fazia sobrecarga, e que foi cair, certeira, na cabeça descoberta do coronel. Este levou a mão instintivamente à calva, e, olhando os dedos brancos daquela indignidade, caiu de joelhos, clamando, arrependido:
- Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O mundo está muito bem organizado! O que nele há, o que nele vive, o que nele existe, foi feito com perfeição, com acerto, com sabedoria!
E levantando-se, limpando a mão:
- Imagine-se que fosse um boi....