Marx é um dos pensadores ocidentais modernos mais caluniados. As acusões são variadas e não faria sentido, no momento, listá-las aqui. Para os objetivos desta postagem basta destacar uma daquelas que são bastante constantes e que diz respeito às questões de método.
O velho revolucionário alemão é acusado de ter construído uma filosofia da história que teria especialmente duas deficiências simultâneas:
1) por conta de uma suposta questão mal resolvida com a filosofia hegeliana, Marx teria conservado de Hegel a perspectiva de uma teleologia da história, ou seja, a história humana se desenvolveria passando por fases determinadas rumo a um fim da história, que seria o comunismo;
2) por uma também suposta adesão sem crises com o padrão cientificista europeu do século XIX, a partir do estudo do desenvolvimento do modo de produção capitalista na Europa, ele teria formulado uma teoria geral da história na qual todas as sociedades humanas em todas as partes do mundo teriam que passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento da mesma forma (durante o período estalinista, isto seria elevada ao status de dogma).
Vários são os textos de Marx que demonstram que estas teses não passam de equívocos derivados de uma leitura apressada de sua obra. Trago a vocês apenas um deles, que, até onde eu sei, ainda não teria sido vertido ao português. Trata-se de uma carta escrita por Marx ao editor da revista russa Otecestvenniye Zapisky no contexto dos desdobramentos da polêmica derivada ainda da publicação do livro 1 de O Capital, associada particulamente com o debate em torno das transformações pelas quais passava a sociedade russa na década de 1870.
No site marxist.org, eu encontrei de forma mais acessível as versões em inglês e espanhol e, baseado nelas, arrisquei um exercício de tradução. Espero que esteja razoável e coloco à crítica de vocês.
Os dois últimos parágrafos são suficientes para quebrar com as duas teses elencadas acima.
Carta de Karl Marx ao Diretor da Revista Russa Otiechéstvennie Zapiski
Escrita em francês em
finais de Novembro de 1877.
O autor do artigo Karl Marx diante do Tribunal de M. Shukovsky
é evidentemente um homem inteligente e se, em minha exposição sobre a acumulação
primitiva, ele tivesse encontrado uma única passagem em apoio às suas
conclusões, ele a teria citado. Na ausência de tal passagem, ele se vê obrigado
a recorrer a um hors d´oeuvre, uma
espécie de polêmica contra um “literato russo” publicada no posfácio da
primeira edição alemã de O Capital.
Qual é a minha queixa contra este escritor naquele escrito? Que ele descobriu a
comuna russa não na Rússia, mas no livro escrito por Haxthausen, conselheiro de
Estado prussiano, e que em suas mãos a comuna russa só serve como um argumento
para provar que a podre e velha Europa será regenerada pela vitória do
pan-eslavismo. Meu juízo sobre este escritor pode estar certo ou errado, mas de
forma alguma pode fornecer uma chave das minhas opiniões sobre os esforços “dos
russos para encontrar um caminho de desenvolvimento para o seu país, que será
diferente daquele pelo qual transitou e continua transitando a Europa
Ocidental”, etc.
No posfácio à segunda edição de O
Capital – que o autor do artigo sobre o sr. Shukovsky conhece, posto que o cita
– falo de “um grande crítico e escritor russo” com a alta consideração que ele
merece. Nos seus notáveis artigos, este escritor tem tratado da questão de se a
Rússia, como sustentam seus economistas liberais, deve começar por destruir a
“comuna rural” (a vila comunal) para passar ao regime capitalista ou se, ao
contrário, ela pode, sem experimentar as torturas deste regime, apropriar-se de
seus frutos desenvolvendo ses
propres donnees historiques [suas próprias condições
histórias]. Ele se pronuncia a favor desta segunda solução. E meu honorável
crítico teria tido ao menos tanto mais razão para inferir da consideração a
respeito deste “grande crítico e escritor russo” que eu compartilho de suas
opiniões sobre a questão, como para concluir da minha polêmica contra o
“literato russo” e pan-eslavista que eu as rejeito.
Para
concluir, como eu não gosto de deixar “nada para ser adivinhado”, irei direto
ao ponto. A fim de que eu fosse qualificado para avaliar o desenvolvimento econômico
atual da Rússia, eu estudei russo e, a seguir, estudei por muitos anos as
publicações oficiais e outras mais vinculadas a este assunto. Cheguei a esta
conclusão: se a Rússia continuar seguindo o caminho que vem seguindo desde
1861, perderá a melhor oportunidade jamais oferecida à história de uma nação e,
assim, sofrerá todas as fatais vicissitudes do regime capitalista.
II
O capítulo sobre a acumulação
primitiva não pretende mais do que traçar o caminho pelo qual, na Europa
Ocidental, a ordem econômica capitalista emergiu do seio da ordem econômica
feudal. Ele, portanto, descreve o movimento histórico que, ao divorciar os
produtores dos seus meios de produção, converte-os em assalariados
(proletários, no sentido moderno da palavra), enquanto converte em capitalistas
aqueles que mantêm os meios de produção sob sua posse. Nesta história, fazem
época todas as revoluções que servem de alavanca para a classe capitalista em
formação; sobretudo as que, depois de despojar grandes massas de homens de seus
meios de produção e subsistência, arremessa-os subitamente ao mercado de
trabalho. Mas a base de todo este desenvolvimento é a expropriação dos
camponeses.
“Isso não se completou
radicalmente, exceto na Inglaterra... mas todos os países da Europa Ocidental
estão indo pelo mesmo movimento” (Capital,
edição francesa, 1879, p. 315). Ao final do capítulo, a tendência histórica da
produção é assim resumida: que ela mesma engendra sua própria negação com a
inexorabilidade que preside as metamorfoses da natureza; que ela mesma criou os
elementos de uma nova ordem econômica ao dar de uma vez um enorme impulso às
forças produtivas do trabalho social e ao desenvolvimento integral de cada um
dos produtores individuais; que a propriedade capitalista, descansando como ela
já está sobre uma forma de produção coletiva, não pode fazer outra coisa do que
transformar-se em propriedade social. Aqui, eu não forneço nenhuma prova pela
simples razão de que esta afirmação não é mais do que um breve resumo de longos
desenvolvimentos dados anteriormente nos capítulos que tratam da produção
capitalista.
Agora, qual aplicação à Rússia
pode meu crítico fazer deste esboço histórico? Unicamente esta: se a Rússia tende
a se transformar em uma nação capitalista a exemplo dos países da Europa
Ocidental – e durante os últimos anos ela tem estado muito agitada seguindo
esta direção – ela não terá sucesso sem primeiro transformar uma boa parte dos
seus camponeses em proletários; e, em consequência, uma vez chegada ao coração
do regime capitalista, ela experimentará suas impiedosas leis tal como os
outros povos profanos. Isso é tudo. Mas é pouco para o meu crítico. Ele se
sente obrigado a metamorfosear meu esboço histórico da gênese do capitalismo na
Europa Ocidental numa teoria histórico-filosófica da marche generale [marcha geral] que o destino impõe a todos os povos,
quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que eles se encontram, a
fim de que possa chegar finalmente a essa formação econômica que assegura, junto
ao maior desenvolvimento as capacidades produtivas do trabalho social, o mais
completo desenvolvimento do homem. Mas eu lhe peço desculpas. (Ele está
simultaneamente a honrar-me e a insultar-me excessivamente). Deixe-nos tomar um
exemplo.
Em diversas passagens de O Capital, eu aludo ao destino a que
foram submetidos os plebeus da Roma Antiga. Em sua origem, haviam sido camponeses
livres, cultivando cada qual sua fração de terra. No curso da história romana,
eles foram expropriados. O mesmo movimento que os divorciou de seus meios de
produção e de subsistência trouxe consigo a formação, não apenas da grande
propriedade fundiária, senão também a do grande capital monetário. E assim,
numa bela manhã, haviam de ser encontrados, por um lado, homens livres
despojados de tudo, exceto de sua força d trabalho e, por outro lado, para que
explorassem este trabalho, aqueles que possuíam toda a riqueza adquirida. E o
que aconteceu? Os proletários romanos se transformaram não em trabalhadores
assalariados, mas em uma ralé de desocupados mais miseráveis que os antigos “pobres
brancos” do sul dos Estados Unidos, e junto com eles se desenvolveu um modo de
produção que não era capitalista e sim dependente da escravatura. Assim, pois, eventos
notavelmente análogos, mas que têm lugar em meios históricos diferentes levam a
resultados totalmente distintos. Estudando separadamente cada uma dessas formas
de evolução e, logo depois, comparando-as poder-se-á encontrar facilmente a
chave deste fenômeno, mas nunca se chegará a ela mediante o passaporte universal
de uma teoria histórico-filosófica geral cuja suprema virtude consiste em ser
suprahistórica.
Versão em inglês: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1877/11/russia.htm
Versão em espanhol: http://www.marxists.org/espanol/m-e/cartas/m1877.htm
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