
Nesse processo, os sucessores de Marx acabam entrando em uma situação difícil. Já que Marx havia corretamente atribuído às leis econômicas uma validade universal análoga às das leis naturais, a tendência natural era aplicar de modo simplista, sem ulteriores concreções ou delimitações, esse tipo de leis ao ser social. Mas, com isso, chegava-se a uma dupla deformação da situaçao ontológica. Por um lado, o próprio ser social e, antes de tudo, a realidade econômica apareciam - em forte oposição com a concepção de Marx - como algo puramente natural (em suma, como um ser privado de consciência); vimos como, para Plekhanov, a consciência só surge como problema numa fase bastante tardia. A teoria de Marx, segundo a qual as necessárias consequências econômicas dos atos teleológicos singulares (que intervêm, portanto, no plano da consciência) possuem uma legalidade objetiva própria, nada tem a ver com essas teorias posteriores. A contraposição metafísica entre ser social e consciência está em nítida contradição com a ontologia de Marx, na qual todo ser social está indissoluvelmente ligado a atos de consciência (com pores alternativos). Por outro lado, surge - e isso se refere mais ao marxismo vulgar do que ao próprio Plekhanov - uma extrapolação mecânico-fatalista da necessidade econômica. A questão é conhecida, não carecendo, portanto, de uma crítica detalhada. Indiquemos apenas que a ´complementação´ neokantiana de Marx parte exclusivamente destas deformações e não das posições do prórpio Marx. Quando, no prefácio a Sobre a Crítica da Economia Política, ele diz: ´não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência´, isso não tem nada a ver com as ditas teorias. Por um lado, Marx não contrapõe ao ser social a consciência social, mas toda e qualquer consciência. Para ele, não existe uma consciência social especificada, como figura própria. Por outro lado, a primeira frase negativa nos diz que Marx está aqui simplesmente criticando o idealismo também a respeito dessa questão; e que está simplesmente reconhecendo a prioridade ontológica do ser social com relação à consciência.
Engels percebeu bem que essas vulgarizações deformavam o marxismo. Nas cartas que endereçou a personalidades de destaque do movimento operário da época encontramos muitas menções ao fato de que, entre base e superestrutura, existem interações, que seria pedantismo ´derivar´ da necessidade econômica, de modo simplista, fatos históricos singulares etc. Em todas essas questões ele sempre teve razão, mas nem sempre conseguiu refutar os desvios do método marxiano em relação a seus princípios. Nas cartas a Joseph Bloch e a Franz Mehring, Engels até procura fornecer uma fundamentação teórica, inclusive com uma autocrítica voltada contra seus escritos e os de Marx. Na carta a Bloch, ele escreve:
´segundo a concepção materialista da história, o favor determinante em última instância na história é a produção e a reprodução da vida real. Mais não foi afirmado, nem por Marx, nem por mim. Se agora alguém ditorce isso no sentido de que o fator econômico seria o único fator determinante, transforma aquela proposição numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura [...] exercem também a sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de modo preponderante a forma dessas lutas. Há uma interação de todos esses momentos, na qual, passando por essa quantidade infinita de casualidades, [...] o movimento econômico termina por se impor como necessário´.
Sem dúvida, Engels expõe de modo correto muitos traços essenciais dessa situação, corrigindo alguns equívocos da vulgarização. Porém, quando tenta emprestar à sua crítica um fundamento filosófico, acreditamos que caia no vazio. A oposição complementar entre conteúdo (economia) e forma (superestrutura) não expressa adequadamente nem a conexão entre ambos, nem a sua diferenciação. Mesmo extraindo da carta a Mehring a definição da forma como ´o tipo e o modo pelo qual essas representações surgem´, não se avança muito. Engels sublinha aqui, de maneira correta, a gênese das ideologias, a autolegalidade relativa dessa gênese. Mas, no fim das contas, tampouco essa gênese deve ser entendida como relação ´forma-conteúdo´. Tal relação, como tentamos mostrar no capítulo sobre Hegel, é uma determinação de reflexão. Isso significa que forma e conteúdo, sempre e em todos os casos, determinam ao mesmo tempo (e só ao mesmo tempo) o caráter, o ser-propriamente-assim (inclusive a universalidade) do objeto singular, do complexo, do processo etc. Porém, justamente por isso é impossível que, na determinação de dois complexos reais diversos um do outro, um complexo figure como conteúdo e o outro como forma".
LUKÁCS, G. Para uma Ontologia do Ser Social. Volume I. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 405-408.
Um comentário:
Que paralelepídedo esse, né cumpadi. E clareia tão pouco sobre marxismo isso, é uma espécie de escolástica marxiana.
Engels "cai no vazio"? Cai no vazio é o marxismo que sai em busca do ser do ser.
Abs do Lúcio Jr.
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