terça-feira, 28 de julho de 2009

"Um Capítulo para o ´Evangelho´" de José Saramago

"De mim se há-de dizer que depois da morte de Jesus me arrependi do que chamavam os meus infames pecados de prostituta e me converti em penitente até ao fim da vida, e isso não é verdade. Subiram-me despida aos altares, coberta unicamente pela cabeleira que me desce até aos joelhos, com os seios murchos e a boca desdentada, e se é certo que os anos acabaram por ressequir a lisa tersura da minha pele, isso só sucedeu porque neste mundo nada pode prevalecer contra o tempo, não porque eu tivesse desprezado e ofendido o mesmo corpo que Jesus desejou e possuiu. Quem aquelas falsidades vier a dizer de mim nada sabe de amor. Deixei de ser prostituta no dia em que Jesus entrou na minha casa trazendo-me a ferida do seu pé para que eu a curasse, mas dessas obras humanas a que chamam pecados de luxúria não teria eu que me arrepender se foi como prostituta que o meu amado me conheceu e, tendo provado o meu corpo e sabido de que vivia, não me virou as costas. Quando diante de todos os discípulos Jesus me beijava uma e muitas vezes, eles perguntaram-lhe porque me queria mais a mim que a eles, e Jesus respondeu: “A que se deve que eu não vos queira tanto como a ela?” Eles não souberam que dizer porque nunca seriam capazes de amar Jesus com o mesmo absoluto amor com que eu o amava. Depois de Lázaro ter morrido, o desgosto e a tristeza de Jesus foram tais que, uma noite, debaixo do lençol que tapava a nossa nudez, eu lhe disse: “Não posso alcançar-te onde estás porque te fechaste atrás de uma porta que não é para forças humanas”, e ele disse, queixa e gemido de animal que se escondeu para sofrer: “Ainda que não possas entrar, não te afastes de mim, tem-me sempre estendida a tua mão mesmo quando não puderes ver-me, se não o fizeres esquecer-me-ei da vida, ou ela me esquecerá”. E quando, alguns dias passados, Jesus foi reunir-se com os discípulos, eu, que caminhava a seu lado, disse-lhe: “Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti”, e ele respondeu: “Quero estar onde estiver a minha sombra se lá é que estiverem os teus olhos”. Amávamo-nos e dizíamos palavras como estas, não apenas por serem belas e verdadeiras, se é possível serem uma coisa e outra ao mesmo tempo, mas porque pressentíamos que o tempo das sombras estava a chegar e era preciso que começássemos a acostumar-nos, ainda juntos, à escuridão da ausência definitiva. Vi Jesus ressuscitado e no primeiro momento julguei que aquele homem era o cuidador do jardim onde o túmulo se encontrava, mas hoje sei que não o verei nunca dos altares onde me puseram, por mais altos que eles sejam, por mais perto do céu que alcancem, por mais adornados de flores e olorosos de perfumes. A morte não foi o que nos separou, separou-nos para todo o sempre a eternidade. Naquele tempo, abraçados um ao outro, unidas pelo espírito e pela carne as nossas bocas, nem Jesus era então o que dele se proclamava, nem eu era o que de mim se escarnecia. Jesus, comigo, não foi o Filho de Deus, e eu, com ele, não fui a prostituta Maria de Magdala, fomos unicamente aquele homem e esta mulher, ambos estremecidos de amor e a quem o mundo rodeava como um abutre babado de sangue. Disseram alguns que Jesus havia expulsado sete demónios das minha entranhas, mas também isso não é verdade. O que Jesus fez, sim, foi despertar os sete anjos que dentro da minha alma dormiam à espera que ele me viesse pedir socorro: “Ajuda-me”. Foram os anjos que lhe curaram o pé, eles foram os que me guiaram as mãos trementes e limparam o pus da ferida, foram os que me puseram nos lábios a pergunta sem a qual Jesus não poderia ajudar-me a mim: “Sabes quem eu sou, o que faço, de que vivo”, e ele respondeu: “Sei”, “Não tiveste que olhar e ficaste a saber tudo”, disse eu, e ele respondeu: “Não sei nada”, e eu insisti: “Que sou prostituta”, “Isso sei”, “Que me deito com homens por dinheiro”, “Sim”, “Então sabes tudo de mim” e ele, com voz tranquila, como a lisa superfície de um lago murmurando, disse: “Sei só isso”. Então, eu ainda ignorava que ele fosse o filho de Deus, nem sequer imaginava que Deus quisesse ter um filho, mas, nesse instante, com a luz deslumbrante do entendimento pelo espírito, percebi que somente um verdadeiro Filho do Homem poderia ter pronunciado aquelas três palavras simples: “Sei só isso”. Ficámos a olhar um para o outro, nem tínhamos dado por que os anjos se tinham retirado já, e a partir dessa hora, pela palavra e pelo silêncio, pela noite e pelo dia, pelo sol e pela lua, pela presença e pela ausência, comecei a dizer a Jesus quem eu era, e ainda me faltava muito para chegar ao fundo de mim mesma quando o mataram. Sou Maria de Magdala e amei. Não há mais nada para dizer."

terça-feira, 21 de julho de 2009

Estou Lendo: "Reificação e Utopia na Cultura de Massa" de Frederic Jameson

"Com essa mercantilização universal de nosso mundo objetivo, os conhecidos relatos sobre a direção-para-o-outro do consumo habitual contemporâneo e a sexualização de nossos objetos e atividades são também dados: o novo carro da moda é essencialmente uma imagem que outras pessoas devem ter de nós e consumimos, menos a coisa em si, mas sua idéia abstrata, aberta a todos os investimentos libidinais engenhosamente reunidos para nós pela propaganda" (p. 4).

Todos os Nomes

O velhinho é foda! A cada dia sou mais fã do Saramago. O último dele que eu li atende pela alcunha que dá título a esta postagem: "Todos os nomes". É a história de um auxiliar de escrita funcionário da Conservatória Geral do Registro Civil de uma cidade fictícia. Ficamos sabendo que o nome dele é Sr. José e este é o único nome próprio presente em todo o livro. A Conservatória Geral é a responsável por registrar, para todos os efeitos legais, as marcas oficiais da existência das pessoas por este mundo. Tão logo é expelida pelo parto, a pessoa ganha o mundo de presente e, para diferenciar-se dele, ganha um nome próprio, que - a despeito da e deliciosamente pela contradição - invariavelmente ele compartilha com muitas pessoas. Afinal de contas, mesmo Epitácios, Abelardos e Albéricos existem aos montes. Os sobrenomes seriam uma saída para possíveis cofusões e idiossincráticos encontros inesperados, mas sabemos também que mesmo eles se repetem e se combinam de maneira a nos pregar algumas das manjadas peças do acaso.
A história do nome próprio é engraçada. De tão pesada que se pode tornar a personalidade por conta de sua própria identidade, há quem prefira se refugiar - nem sempre por estar foragido pela polícia política das variadas matizes ditatoriais - em pseudônimos. Um outro português pode ser citado como exemplo: tão fracas as suas costas para aguentar o peso de sua personalidade, a combinação dos nomes "Fernando" + "Pessoa" foi, para ele, insuportável rótulo. E o poeta inventou, para dificultar seu encontro ou para compartilhar "consigos mesmos" o peso da unicidade da existência, outros tantos nomes. Só para variar.
Apesar disso, de toda nossa história, o mais que pode ficar depois de nós mesmos termos passado é o nosso nome e a obra a que ele se liga, ou não. O Registro Civil comprova e certifica que aqui nascemos, casamos (ou não) e morremos como Fulanos, Ribamares ou Asdrúbals. O que a gente fez neste interregno fica sob nossa responsabilidade, mas pouco importa para a Conservatória. Não é à toa, portanto, que o Sr. José, tomado de uma curiosidade que o tirará de sua sufocante rotina e diante de um "verbete" de uma mulher desconhecida, fará de tudo para tomar conhecimento da história que ela construiu na sua vida. E nisso ele encontra várias outras pessoas, que Saramago nos dispensa de apresentações. À exemplo do que acontece em "O Ensaio sobre a Cegueira" e em "O Ensaio sobre a Lucidez", conhecemos os personagens como "a mulher do rés-do-chão direito", "o conservador", o "oficial de registro civil", o "atendente da farmácia", a "mulher desconhecida", e assim por diante. O fato de não haver nomes não nos impede, no entanto, de conhecer os personagens. Assim como "o médico" e a "mulher do médico" ou a "rapariga dos óculos escuros", o que importa são as histórias dos personagens e o que eles fazem do contato que tem entre si quando Saramago os coloca frente a frente. Os diálogos entre desconhecidos são deliciosamente afetuosos e desconfiados, assim como é nossa vida: um misto de deslumbramente e medo diante do que fazer.
O Sr. José fica apaixonado. O amor é novamente a redenção, assim como o foi, por exemplo, na "História do Cerco de Lisboa", assim como tinha sido muito antes no "Crime e Castigo" do Dostoiévski. Mas o amor do Sr. José não é exatamente pela mulher desconhecida, mas pelo risco de encontrá-la. Ele se apaixona pela busca e treme diante da chance de de vê-la terminada.
É simples assim, como em outros livros. O que importa não é se há finais inesperados ou finais conclusivos. Os romances do Saramago não são como os livros de detetive que você "lê pelo fim", como se aquela quantidade enorme de páginas no interior do livro fosse apenas um meio para o autor nos "surpreender" com a identidade do criminoso. O que define este e outros romances do Saramago é a beleza com que ele descreve situações de vida, isto é, linha por linha, frase por frase são saboreadas em sua harmonia interna. O fim do romance não precisa ser dramático ou happy ending, pois, o fim, todos sabemos como termina: na morte. O que importa é o que fazemos antes que ela sorrateiramente nos venha puxar pelos calcanhares.


quinta-feira, 2 de julho de 2009