terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Estou lendo "Para uma Ontologia do Ser Social", de G. Lukács

"O marxismo tradicional, porém, não é capaz de sustentar a disputa nem sequer com adversários deste porte. Surge no interior dele um falso dualismo entre ser social e consciência social, dualismo esse de cunho gnosiológico que, precisamente por isso, não se confronta com as questões ontológicas decisivas. Plekhanov, certamente o teórico de maior cultura filosófica do período anterior a Lenin, pelo que sei, foi quem produziu a formulação mais influente dessa teoria. Ele pretende determinar a relação entre base e superestrutura do seguinte modo: a primeira é constituída pelo ´nível das forças produtivas´ e das ´relações econômicas por elas condicionadas´. Sobre tal fundamento surge, já como superestrutura, o ´ordenamento político-social´. Só com base neste é que surge a consciência social, que Plekhanov define da seguinte maneira: ´a psicologia do homem social, determinada em parte pela economia e, em parte, pelo ordenamento político-social que surge desta´. Não é difícil ver que Plekhanov se encontra sob a influência das teorias do conhecimento do século XIX. Estas nasceram essencialmente do esforço de fundamentar em termos filosóficos as conquistas das ciências naturais modernas. E, como é compreensível, o modelo decisivo era formado pela física: de um lado, o ser determinado por leis, no qual a consciência não podia estar presente de nenhum modo; por outro, a consciência puramente cognoscitiva das ciências naturais, a qual, por sua vez, em virtude de seu próprio funcionamento, não parecia conter em si nada em comum com o ser. Sem entrar agora na problemática dessa teoria do conhecimento, observemos apenas que essa pura dualidade de ser privado de consciência e de consciência privada de ser tem uma relativa, mas só relativa, jusificação metodológica. Nem mesmo a introdução da vida orgânica na esfera de problemas dessa teorioa do conhecimento é capaz de perturbar o funcionamento desse modelo, já que, como vimos, a consciência dos animais, mesmo nos superiores, pode ser considerada ainda um simples epifenômeno do puramente natural. Apenas quando esse esquema da aparência gnosiológica é aplicada ao ser social é que se revela uma antinomia insolúvel, que quebra os limites estreitos da moldura proposta. A teoria do conhecimento burguesa resolve a questão por meio de uma pura interpretação idealista de todos os fenômenos sociais, com o que desaparece mais ou menos inteiramente, como é óbvio, o caráter ontológico do ser social. Isso acontece até mesmo com N. Hartmann.

Nesse processo, os sucessores de Marx acabam entrando em uma situação difícil. Já que Marx havia corretamente atribuído às leis econômicas uma validade universal análoga às das leis naturais, a tendência natural era aplicar de modo simplista, sem ulteriores concreções ou delimitações, esse tipo de leis ao ser social. Mas, com isso, chegava-se a uma dupla deformação da situaçao ontológica. Por um lado, o próprio ser social e, antes de tudo, a realidade econômica apareciam - em forte oposição com a concepção de Marx - como algo puramente natural (em suma, como um ser privado de consciência); vimos como, para Plekhanov, a consciência só surge como problema numa fase bastante tardia. A teoria de Marx, segundo a qual as necessárias consequências econômicas dos atos teleológicos singulares (que intervêm, portanto, no plano da consciência) possuem uma legalidade objetiva própria, nada tem a ver com essas teorias posteriores. A contraposição metafísica entre ser social e consciência está em nítida contradição com a ontologia de Marx, na qual todo ser social está indissoluvelmente ligado a atos de consciência (com pores alternativos). Por outro lado, surge - e isso se refere mais ao marxismo vulgar do que ao próprio Plekhanov - uma extrapolação mecânico-fatalista da necessidade econômica. A questão é conhecida, não carecendo, portanto, de uma crítica detalhada. Indiquemos apenas que a ´complementação´ neokantiana de Marx parte exclusivamente destas deformações e não das posições do prórpio Marx. Quando, no prefácio a Sobre a Crítica da Economia Política, ele diz: ´não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência´, isso não tem nada a ver com as ditas teorias. Por um lado, Marx não contrapõe ao ser social a consciência social, mas toda e qualquer consciência. Para ele, não existe uma consciência social especificada, como figura própria. Por outro lado, a primeira frase negativa nos diz que Marx está aqui simplesmente criticando o idealismo também a respeito dessa questão; e que está simplesmente reconhecendo a prioridade ontológica do ser social com relação à consciência. 

Engels percebeu bem que essas vulgarizações deformavam o marxismo. Nas cartas que endereçou a personalidades de destaque do movimento operário da época encontramos muitas menções ao fato de que, entre base e superestrutura, existem interações, que seria pedantismo ´derivar´ da necessidade econômica, de modo simplista, fatos históricos singulares etc. Em todas essas questões ele sempre teve razão, mas nem sempre conseguiu refutar os desvios do método marxiano em relação a seus princípios. Nas cartas a Joseph Bloch e a Franz Mehring, Engels até procura fornecer uma fundamentação teórica, inclusive com uma autocrítica voltada contra seus escritos e os de Marx. Na carta a Bloch, ele escreve: 

´segundo a concepção materialista da história, o favor determinante em última instância na história é a produção e a reprodução da vida real. Mais não foi afirmado, nem por Marx, nem por mim. Se agora alguém ditorce isso no sentido de que o fator econômico seria o único fator determinante, transforma aquela proposição numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura [...] exercem também a sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam de modo preponderante a forma dessas lutas. Há uma interação de todos esses momentos, na qual, passando por essa quantidade infinita de casualidades, [...] o movimento econômico termina por se impor como necessário´.

 Sem dúvida, Engels expõe de modo correto muitos traços essenciais dessa situação, corrigindo alguns equívocos da vulgarização. Porém, quando tenta emprestar à sua crítica um fundamento filosófico, acreditamos que caia no vazio. A oposição complementar entre conteúdo (economia) e forma (superestrutura) não expressa adequadamente nem a conexão entre ambos, nem a sua diferenciação. Mesmo extraindo da carta a Mehring a definição da forma como ´o tipo e o modo pelo qual essas representações surgem´, não se avança muito. Engels sublinha aqui, de maneira correta, a gênese das ideologias, a autolegalidade relativa dessa gênese. Mas, no fim das contas, tampouco essa gênese deve ser entendida como relação ´forma-conteúdo´. Tal relação, como tentamos mostrar no capítulo sobre Hegel, é uma determinação de reflexão. Isso significa que forma e conteúdo, sempre e em todos os casos, determinam ao mesmo tempo (e só ao mesmo tempo) o caráter, o ser-propriamente-assim (inclusive a universalidade) do objeto singular, do complexo, do processo etc. Porém, justamente por isso é impossível que, na determinação de dois complexos reais diversos um do outro, um complexo figure como conteúdo e o outro como forma". 

LUKÁCS, G. Para uma Ontologia do Ser Social. Volume I. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 405-408.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Tradução - Carta de Karl Marx a Ferdinand Lassalle, julho de 1861

Dando continuidade a alguns exercícios de tradução, coloco à apreciação crítica mais uma tentativa. Trata-se de uma carta escrita por Marx a Ferdinand Lassalle, em julho de 1861, em que é possível vislumbrar - a partir de esclarecimentos que Marx faz a Lassalle a respeito da interpretação que fizera do livro deste último chamado Sistema dos Direitos Adquiridos - alguns indícios do modo como o velho Mouro pensava as relações entre o direito e o desenvolvimento econômico da sociedade. 

O sentido da tão discutida relação entre infraestrutura e superestrutura - apresentada de maneira muito sintética no célebre Prefácio de 1859 - ganha aqui, mesmo que de modo muito indicativo, nuances aparentemente paradoxais. Digo aparantemente paradoxais, porque a afirmação de Marx de que "a representação jurídica de determinadas relações de propriedades, por mais que se origine delas, não é, por outro lado, congruente com elas e nem pode sê-lo" deve soar um absurdo para aqueles que aprenderam, consoante a uma visão determinista, que as relações entre infraestrutura (relações de propriedade) e a superestrutura (representações jurídicas) são de congruência absoluta. Se a afirmação não viesse do próprio Marx, ela seria taxada pejorativamente de revisionista.

O que Marx, nesta afirmação en passant, permite descortinar é, ainda de forma muito geral, a autonomia relativa da esfera do direito frente a esfera econômica. A incongruência entre as representações jurídicas e as relações de propriedade decorre do fato de cada uma delas ter legalidades próprias, de constituírem complexos sociais que possuem dinâmicas internas específicas, critérios imanentes característicos e que as relações entre ambas, embora sejam marcadas por um condicionamento basilar do momento da produção material da vida social (momento predominante) sobre o momento da regulação social destas relações de produção, devem ser entendidas a partir de uma perspectiva de desenvolvimento desigual. Nem o direito é um epifenômeno da economia, nem é uma projeção etérea de uma subjetividade nefelibata.

Não se deve entender esta incongruência em sentido gnosiológico, isto é, como um erro de concepção do sistema de representações jurídicas com relação às relações de propriedade. Se o problema fosse gnosiológico, a solução estaria em se elaborar, no pensamento, um sistema lógico-jurídico perfeitamente adaptado a determiado status quo. E, para Marx, obviamente não se trata disso, como fica claro nas passagens da carta em que ele fala sobre as apropriações supostamente mal-entendidas que as gerações posteriores fazem das realizações das gerações passadas (o uso irônico desta expressão é evidente e deve ser interpretado como um alerta de Marx a Lassalle) .

Os usos comparativos, trans-geracionais de determinadas conquistas históricas da humanidade serão sempre "mal-entendidos", uma vez que cada geração olha para o passado tendo em vista as questões do presente e não é possível, exceto de maneira mistificadora, transpor mecanicamente experiências históricas de um tempo para outro. Como ele dissera no 18 Brumário, a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos, mas isso ocorre não por uma maldição transcendente qualquer ou um fado do destino. Trata-se da maneira mesma da humanidade se reconhecer como tal: produzida por si mesma no interior desta epopeia histórica sobre a crosta deste planeta. 

É claro que, nesta carta, Marx não apresenta de maneira desenvolvida as relações entre direito e economia. Mas, a partir dela, é possível fazer inferências interessantes e somente a partir da pesquisa da realidade atual será possível descobrir como é que estas coisas estão. Afinal de contas, a obra do revolucionário alemão não é um conjunto de revelações, mas um arsenal de, como diria Vigotski, instrumentos psicológicos para entender o mundo em que vivemos. 

A escolha desta carta se deveu obviamente por conta do tema, mas também por não haver uma versão dela em português no marxists.org.

Espero que a tradução esteja boa.  




Carta de Karl Marx a Ferdinand Lassalle

Londres, 22 Julho de 1861.

Caro Lassalle,

Você deve atribuir o meu silêncio um tanto prolongado a diversas “circunstâncias atenuantes”. D´abord [primeiro], ainda não consegui – a despeito das mais positivas garantias que me foram dadas a este respeito – colocar as minhas finanças em ordem e, assim, fazer chegar às suas mãos as £ 10 restantes, o que me irrita mais do que qualquer outra coisa.

Secundo [segundo], desde há algumas semanas eu venho sofrendo de uma horrível inflamação nos olhos (ou melhor, pelo menos no último dia ou dois), o que torna qualquer leitura ou escrita extremamente penosa. 

Deixe-me começar agradecendo sinceramente aos seus esforços em favor da minha renaturalização. Ao menos, conseguimos comprometer o governo prussiano e demonstrar o completo vazio da sua assim chamada anistia. Acredito que a estranha tentativa de assassinato empreendida por O. Becker (não está claro nos jornais se ele é russo ou alemão) muito há de contribuir para um terrível fim da “nova era”. 

Tenho lido a segunda parte do seu trabalho (quando eu quis começar pela primeira, fui impedido pelo meu problema oftálmico), o que vem me proporcionando um imenso prazer. Eu comecei com o número II, porque o assunto me era mais conhecido, o que não me impedirá de subsequentemente considerar a questão em sua totalidade.

Você compreendeu mal, em certa medida, os comentários muito breves da minha última carta – sem dúvida, a culpa disso se deve ao modo como me expressei. D´abord [primeiro], por “liberdade de testamento” eu não me referia à liberdade de alguém fazer um testamento, mas à liberdade de fazê-lo com completa desconsideração à sua família. Na Inglaterra, o testamento enquanto tal é muito antigo e não pode haver a menor dúvida de que os anglo-saxões o adotaram a partir do direito [jurisprudência] romano. Que os ingleses, desde muito cedo, consideraram o Testaterbrecht[1] ao invés do Intestat[2] como normal é evidente pelo fato de que, desde a Alta Idade Média, quando o pater familias[3] morria ab intestato[4], apenas a parte obrigatória ia para sua esposa e seus filhos, de acordo com as circunstâncias, sendo que de ⅓ a ½ ia para a Igreja. Para os padres, se o pater familias tivesse feito o testamento, ele haveria de, visando a salvação de sua alma, destinar um certo quantum à Igreja. Em geral, parece ser provável que os testamentos, na Idade Média, tinham uma conotação religiosa e eram feitos no interesse do falecido e não dos sobreviventes. Mas o que eu estava querendo ressaltar (eu não estava, é claro, me ocupando da propriedade feudal) era que, depois da revolução de 1688, as restrições impostas ao assentamento das famílias, às quais o testador ainda estava juridicamente sujeito, foram suspensas. Que isto estava de acordo com o sistema de livre concorrência e com a sociedade baseada nela não pode ser seriamente questionado; nem mesmo que o direito romano, mais ou menos modificado, foi adotado pela moderna sociedade, porque a ideia jurídica de que o sujeito da livre concorrência tem de si mesmo corresponde àquela da pessoa romana (não que eu tenha qualquer pretensão de tratar aqui longamente desta importante questão, nomeadamente que a representação jurídica de determinadas relações de propriedades, por mais que se origine delas, não é, por outro lado, congruente com elas e nem pode sê-lo). 

Você mostrou que a adoção do testamento romano se baseia originaliter [orginalmente] em um mal-entendido (e continua assim, se se considerar o discernimento científico dos juristas). Mas disto não deriva, de modo algum, que o testamento em sua forma moderna – não importa sobre qual mal-entendido do direito romano os juristas o construíram – seja o testamento romano mal-entendido. Se fosse assim, poderia ser dito que toda realização de um período antigo adotada por um período posterior seria o passado mal-entendido.  É certo, por exemplo, que as 3 unidades, como teoricamente construíram os dramaturgos franceses nos tempos de Luís XIV, assentavam-se num mal-entendido do drama grego (e de Aristóteles como expoente do mesmo). Por outro lado, é igualmente certo que eles entenderam os gregos de uma maneira que correspondia exatamente às suas próprias necessidades artísticas. Daí a sua contínua adesão ao chamado “drama clássico” mesmo depois de Dacier e outros terem proporcionado a eles uma correta interpretação de Aristóteles. É também certo que todas as constituições modernas são largamente baseadas em mal-entendidos da Constituição inglesa, ao adotarem como essencial precisamente aquilo que aparece como decadente da Constituição inglesa – e que continua a existir na Inglaterra, de modo formal, somente per abusum [por abuso] –, por exemplo, num assim denominado Kabinett [ministério]. A forma mal-entendida é precisamente a forma geral. É a que se presta a um uso geral num determinado estágio do desenvolvimento da sociedade. 

Saber, por exemplo, se, sem Roma, os ingleses teriam ou não teriam a forma de testamento que eles agora têm (que, embora derive diretamente de e corresponda à forma romana, não é romana) é, para mim, de menor importância. Agora, deixe-me colocar a questão de outra maneira: não poderiam os legados (e sob o chamado testamento de hoje o chefe beneficiário se torna, de fato, meramente um legatário universal) terem surgidos por si mesmos da sociedade burguesa, sem qualquer referência à Roma? Ou, no lugar dos legados, apenas instruções escritas por parte do defuncti [defunto] para a alienação de seus bens?

O que ainda parece, para mim, não provado é se o testamento grego foi importado por Roma, embora tenha sido admitido que provavelmente foi isso que aconteceu. 

Você terá visto que a sentença contra Blanqui – uma das mais escandalosas que já se pronunciou – foi confirmada na corte de apelação [em segunda instância]. Estou, agora, curioso para ver o que os amigos dele em Brussels terão que me dizer. 

Minha esposa envia-lhe as mais gentis saudações.

Seu,

Karl Marx.

A respeito de Brockhaus, eu refletirei sobre a questão tão logo eu termine a segunda parte da Contribuição à Crítica da Economia Política. Até o presente momento, eu jamais enviei um manuscrito ao acaso.


[1] Direito à sucessão, à transmissão da propriedade via testamento.
[2] Direito à sucessão, à transmissão da propriedade via princípio da legitimidade tradicional, sem necessidade de testamento.
[3] Pai de Família.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

"As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhaunsen", de Michael Lowy

A lenda do Barão de Münchhausen conta a história de um nobre alemão que, passeando cavalo em um bosque, acaba caindo em um pântano e começa a afundar. Sem ter como contar com a ajuda de ninguém, a lenda diz que ele conseguiu escapar da morte saindo do pântado ao puxar os próprios cabelos.

Esta história serve de alegoria para Michael Löwy problematizar a questão dos limites e possibilidades de produção do conhecimento objetivo nas ciências sociais, ao colocar no centro do debate as relações entre concepções de mundo e a análise da realidade social e pondo em perspectiva as posições de três grande tradições do pensamento social ocidental: o positivismo, o historicismo e o marxismo. A relação entre sujeito e objeto não se restringe a uma esfera abstrata do conhecimento e são analisadas no interior da complexidade da vida real. Desta forma, sujeito e objeto não são menos que os seres humanos de carne e osso vivendo no interior de relações sociais determinadas e tentando entender o mundo social que eles mesmos produzem. 

Livro muito interessante que coloca em perspectiva um importante debate a respeito da produção de conhecimento nas ciências humanas e, ao fazê-lo, procura demonstrar como objetividade científica não não é a mesma coisa que neutralidade científica, que esta não é condição para aquela (uma vez é impossível) e que, se o  Barão de Münchhausen tem um lugar importante na história da literatura, transportado acriticamente para a ciência traz mais problemas do que soluções.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Tradução - Carta de Karl Marx ao Diretor da revista russa Otiechéstvennie Zapiski

Marx é um dos pensadores ocidentais modernos mais caluniados. As acusões são variadas e não faria sentido, no momento, listá-las aqui. Para os objetivos desta postagem basta destacar uma daquelas que são bastante constantes e que diz respeito às questões de método.

O velho revolucionário alemão é acusado de ter construído uma filosofia da história que teria especialmente duas deficiências simultâneas: 

1) por conta de uma suposta questão mal resolvida com a filosofia hegeliana, Marx teria conservado de Hegel a perspectiva de uma teleologia da história, ou seja, a história humana se desenvolveria passando por fases determinadas rumo a um fim da história, que seria o comunismo;

2) por uma também suposta adesão sem crises com o padrão cientificista europeu do século XIX, a partir do estudo do desenvolvimento do modo de produção capitalista na Europa, ele teria formulado uma teoria geral da história na qual todas as sociedades humanas em todas as partes do mundo teriam que passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento da mesma forma (durante o período estalinista, isto seria elevada ao status de dogma). 

Vários são os textos de Marx que demonstram que estas teses não passam de equívocos derivados de uma leitura apressada de sua obra. Trago a vocês apenas um deles, que, até onde eu sei, ainda não teria sido vertido ao português. Trata-se de uma carta escrita por Marx ao editor da revista russa Otecestvenniye Zapisky no contexto dos desdobramentos da polêmica derivada ainda da publicação do livro 1 de O Capital, associada particulamente com o debate em torno das transformações pelas quais passava a sociedade russa na década de 1870. 

No site marxist.org, eu encontrei de forma mais acessível as versões em inglês e espanhol e, baseado nelas, arrisquei um exercício de tradução. Espero que esteja razoável e coloco à crítica de vocês. 

Os dois últimos parágrafos são suficientes para quebrar com as duas teses elencadas acima. 


Carta de Karl Marx ao Diretor da Revista Russa Otiechéstvennie Zapiski
 



Escrita em francês em finais de Novembro de 1877.

O autor do artigo Karl Marx diante do Tribunal de M. Shukovsky é evidentemente um homem inteligente e se, em minha exposição sobre a acumulação primitiva, ele tivesse encontrado uma única passagem em apoio às suas conclusões, ele a teria citado. Na ausência de tal passagem, ele se vê obrigado a recorrer a um hors d´oeuvre, uma espécie de polêmica contra um “literato russo” publicada no posfácio da primeira edição alemã de O Capital. Qual é a minha queixa contra este escritor naquele escrito? Que ele descobriu a comuna russa não na Rússia, mas no livro escrito por Haxthausen, conselheiro de Estado prussiano, e que em suas mãos a comuna russa só serve como um argumento para provar que a podre e velha Europa será regenerada pela vitória do pan-eslavismo. Meu juízo sobre este escritor pode estar certo ou errado, mas de forma alguma pode fornecer uma chave das minhas opiniões sobre os esforços “dos russos para encontrar um caminho de desenvolvimento para o seu país, que será diferente daquele pelo qual transitou e continua transitando a Europa Ocidental”, etc.

No posfácio à segunda edição de O Capital – que o autor do artigo sobre o sr. Shukovsky conhece, posto que o cita – falo de “um grande crítico e escritor russo” com a alta consideração que ele merece. Nos seus notáveis artigos, este escritor tem tratado da questão de se a Rússia, como sustentam seus economistas liberais, deve começar por destruir a “comuna rural” (a vila comunal) para passar ao regime capitalista ou se, ao contrário, ela pode, sem experimentar as torturas deste regime, apropriar-se de seus frutos desenvolvendo ses propres donnees historiques [suas próprias condições histórias]. Ele se pronuncia a favor desta segunda solução. E meu honorável crítico teria tido ao menos tanto mais razão para inferir da consideração a respeito deste “grande crítico e escritor russo” que eu compartilho de suas opiniões sobre a questão, como para concluir da minha polêmica contra o “literato russo” e pan-eslavista que eu as rejeito. 

Para concluir, como eu não gosto de deixar “nada para ser adivinhado”, irei direto ao ponto. A fim de que eu fosse qualificado para avaliar o desenvolvimento econômico atual da Rússia, eu estudei russo e, a seguir, estudei por muitos anos as publicações oficiais e outras mais vinculadas a este assunto. Cheguei a esta conclusão: se a Rússia continuar seguindo o caminho que vem seguindo desde 1861, perderá a melhor oportunidade jamais oferecida à história de uma nação e, assim, sofrerá todas as fatais vicissitudes do regime capitalista.

II

O capítulo sobre a acumulação primitiva não pretende mais do que traçar o caminho pelo qual, na Europa Ocidental, a ordem econômica capitalista emergiu do seio da ordem econômica feudal. Ele, portanto, descreve o movimento histórico que, ao divorciar os produtores dos seus meios de produção, converte-os em assalariados (proletários, no sentido moderno da palavra), enquanto converte em capitalistas aqueles que mantêm os meios de produção sob sua posse. Nesta história, fazem época todas as revoluções que servem de alavanca para a classe capitalista em formação; sobretudo as que, depois de despojar grandes massas de homens de seus meios de produção e subsistência, arremessa-os subitamente ao mercado de trabalho. Mas a base de todo este desenvolvimento é a expropriação dos camponeses. 

“Isso não se completou radicalmente, exceto na Inglaterra... mas todos os países da Europa Ocidental estão indo pelo mesmo movimento” (Capital, edição francesa, 1879, p. 315). Ao final do capítulo, a tendência histórica da produção é assim resumida: que ela mesma engendra sua própria negação com a inexorabilidade que preside as metamorfoses da natureza; que ela mesma criou os elementos de uma nova ordem econômica ao dar de uma vez um enorme impulso às forças produtivas do trabalho social e ao desenvolvimento integral de cada um dos produtores individuais; que a propriedade capitalista, descansando como ela já está sobre uma forma de produção coletiva, não pode fazer outra coisa do que transformar-se em propriedade social. Aqui, eu não forneço nenhuma prova pela simples razão de que esta afirmação não é mais do que um breve resumo de longos desenvolvimentos dados anteriormente nos capítulos que tratam da produção capitalista.

Agora, qual aplicação à Rússia pode meu crítico fazer deste esboço histórico? Unicamente esta: se a Rússia tende a se transformar em uma nação capitalista a exemplo dos países da Europa Ocidental – e durante os últimos anos ela tem estado muito agitada seguindo esta direção – ela não terá sucesso sem primeiro transformar uma boa parte dos seus camponeses em proletários; e, em consequência, uma vez chegada ao coração do regime capitalista, ela experimentará suas impiedosas leis tal como os outros povos profanos. Isso é tudo. Mas é pouco para o meu crítico. Ele se sente obrigado a metamorfosear meu esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental numa teoria histórico-filosófica da marche generale [marcha geral] que o destino impõe a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que eles se encontram, a fim de que possa chegar finalmente a essa formação econômica que assegura, junto ao maior desenvolvimento as capacidades produtivas do trabalho social, o mais completo desenvolvimento do homem. Mas eu lhe peço desculpas. (Ele está simultaneamente a honrar-me e a insultar-me excessivamente). Deixe-nos tomar um exemplo.

Em diversas passagens de O Capital, eu aludo ao destino a que foram submetidos os plebeus da Roma Antiga. Em sua origem, haviam sido camponeses livres, cultivando cada qual sua fração de terra. No curso da história romana, eles foram expropriados. O mesmo movimento que os divorciou de seus meios de produção e de subsistência trouxe consigo a formação, não apenas da grande propriedade fundiária, senão também a do grande capital monetário. E assim, numa bela manhã, haviam de ser encontrados, por um lado, homens livres despojados de tudo, exceto de sua força d trabalho e, por outro lado, para que explorassem este trabalho, aqueles que possuíam toda a riqueza adquirida. E o que aconteceu? Os proletários romanos se transformaram não em trabalhadores assalariados, mas em uma ralé de desocupados mais miseráveis que os antigos “pobres brancos” do sul dos Estados Unidos, e junto com eles se desenvolveu um modo de produção que não era capitalista e sim dependente da escravatura. Assim, pois, eventos notavelmente análogos, mas que têm lugar em meios históricos diferentes levam a resultados totalmente distintos. Estudando separadamente cada uma dessas formas de evolução e, logo depois, comparando-as poder-se-á encontrar facilmente a chave deste fenômeno, mas nunca se chegará a ela mediante o passaporte universal de uma teoria histórico-filosófica geral cuja suprema virtude consiste em ser suprahistórica.