sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Tese 6 sobre o Conceito de História de Walter Benjamin e o 18 Brumário de Marx

Seria possível estabelecer um paralelo entre estes dois excertos, especialmente nas partes destacadas?

Tese 6 - Walter Benjamin

"Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta no momento do perigo ao sujeito histórico sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer" (grifo meu).





18 Brumário de Luís Bonaparte - Karl Marx


"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas do passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789/1814 vestiu-se alternadamente como a República Romana e como o Império Romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793/1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para a sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela" (grifo meu).

Karl Marx e a Comuna de Paris - José Paulo Netto

Marx e os embates na esquerda hegeliana - Aula do Seminário "Leituras Marxistas" da Pós-Graduação em Educação da Unicamp

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A Moça Que Mostrava a Coxa - Carlos Drummond de Andrade



























Penélope Cruz
A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não mostrava aquilo
- concha, berilo, esmeralda -
que se entreabre, quatrifólio,
e encerrra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea,
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
à visão dos seios claros,
qual pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o maximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-dalva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjoo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quando mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia...
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Carta a Stalingrado - Carlos Drummond de Andrade

















Nós somos uma geração medíocre. Lembro de ter lido em algum lugar que, diante do resultado horroroso da Segunda Guerra Mundial, os filhos dos europeus - especialmente naqueles países em que o fascismo dominou - não perdoaram seus pais por terem permitido tamanha atrocidade e se dispuseram a tentar tomar a história em suas mãos e contribuir para o projeto social da emancipação humana. Conseguiram? Não completamente! Transferiram este desafio e esta responsabilidade para as gerações seguintes, mas não sem legado. Haja vista a efervescência político-social do período dos anos 50 ao final dos anos 70. E nós? Não estamos ainda à altura do desafio. Não temos condição de escapar: a radicalidade das dificuldades estão na mesma medida da demanda das suas soluções - para problemas radicais, saídas radicais.
O individualismo nos massacra e impede que tenhamos dimensão da exigência histórica. Isto lembra a imagem evocada por Walter Benjamin do "encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa" na sua 2° tese sobre o conceito de história, que, por sua vez, alude à assertiva de Marx, segundo a qual "o morto domina o vivo".
Cada um de nós sofre a condição de mera personificação do capital e, diante das graves contradições, há aqueles que se põem em luta e há aqueles que esperam um milagre. Não há espaço para neutralidades: não assumir conscientemente posição é já tomar posição.
Carlos Drummond nos permite resgatar o sentido da força do coletivo, a transcendência do indivíduo no projeto societário. A "Carta a Stalingrado" é uma ode ao mesmo tempo linda e temorosa diante da ação coletiva de seres humanos em defesa de um mundo melhor. O horror da guerra não permite galanteios nem meias palavras. A crueza da imagem poética é a expressão do inescapável fardo do tempo histórico, como nos diz Mészáros.
Fica, então, o elogio de Drummond à força do povo soviético, que feriu de morte o nazismo e é muito pouco lembrado na história do século XX. Horror e glória mesclam-se neste canto quase elegíaco à esperança.

"Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem."

Andrade, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. Record: São Paulo, 2001.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O Dilema de Hamlet

"Por analogia, o dilema de Hamlet é o dilema da consciência militante. Vê o mundo se desmoronar e vive profundamente seu sofrimento. Quer realizar a profecia da justiça, mas se sente fraca como indivíduo diante das forças objetivas de um mundo que se apresenta de forma invencível. Oscila entre o delírio e a ação para a qual seu sofrimento a empurra. Nossas ações e nossa fúria seriam justificadas, ou espíritos malignos nos conduzem a atos vis enquanto buscamos a virtude? Não basta viver a vida para compreendê-la, é necessário duplicá-la na arte ou na ciência para conhecê-la de fato, para ter na mediação das palavras uma justificativa para nossos atos. Não basta que o movimento próprio da objetividade aponte claramente para a dissolução da ordem da propriedade privada, não basta que produza como pólo complementar do processo de acumulação crescente de valor a mais plena manifestação da miséria e desumanização, é necessário produzir o sujeito da transformação e sua consciência".

(Mauro Iasi, "O Dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência", Viramundo: São Paulo, 2002, p. 15).

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

tu messias mais, de João Negreiros

Entrevista de José Paulo Netto à revista Caros Amigos

Entrevista: José Paulo Netto

"Impera na esquerda ‘reciclada’ um cinismo assombroso"

O professor de serviço social e pensador marxista explica a história da esquerda no Brasil e seus desdobramentos no momento atual em entrevista especial para o site da Caros Amigos, em razão do lançamento da edição especial "Dilemas e Desafios da Esquerda Brasileira". Confira.

Por Tatiana Merlino

Caros Amigos - Quando se poderia afirmar que surgiu uma esquerda no Brasil?

Sem pretender rigor cronológico, diria que se pode falar em uma proto-história da esquerda brasileira a partir da última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20. Pense-se, para ficarmos em exemplos conhecidos, nos nomes de Silvério Fontes, em parte da atividade de Euclides da Cunha e mesmo nas posições de Lima Barreto. Mas, com rigor, penso que a história da nossa esquerda tem mesmo o seu momento fundacional com a atividade dos grupos anarquistas, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Julgo correta a afirmação de que os anarquistas inauguraram a história da esquerda no Brasil.

Caros Amigos - Qual foi a influência da imigração europeia na consolidação de uma ideologia de esquerda no Brasil?

Esta influência foi absolutamente fundamental – não por acaso, mencionei, acima, que os anarquistas inauguraram a história da esquerda em nosso país. E sabemos do papel dos imigrantes neste processo (aliás, a oligarquia percebeu-o claramente: recorde-se a “lei celerada”, de 1907). Mas é necessário enfatizar que não se tratou de nenhuma transplantação artificial: a incipiente industrialização criava as condições para que as ideias difundidas pelas lideranças anarquistas penetrassem com força no nascente movimento operário. A greve de 1917, em São Paulo, mostra-o suficientemente.

Caros Amigos - Que ideias os imigrantes trouxeram?

Não cabe aqui, suponho, sumariar o ideário anarquista (que, diga-se de passagem, chega-nos como um caldo de cultura bastante heterogêneo). A mim, parece-me que o mais significativo pode ser resumido em dois pontos elementares: a defesa da dignidade do trabalho e do trabalhador e a definição claríssima das linhas básicas do antagonismo entre os interesses dos trabalhadores e os da oligarquia. Num país onde a herança do escravismo, ademais de pesadíssima, estava muito viva, a simples afirmação dos direitos civis e políticos do trabalhador “livre” já era, em si, revolucionária. Quanto à determinação das lutas de classes, o princípio da autonomia política dos trabalhadores (mesmo que, para os anarquistas, isto significasse uma recusa da intervenção política institucional, o que se demonstrou insustentável), no Brasil nós o devemos aos anarquistas.

Caros Amigos - Quais eram as correntes que atuaram no país no começo do século 20? Como era tal atuação?

À mobilização anarquista, a oligarquia respondeu imediatamente (para além da repressão) com o estímulo ao sindicalismo “amarelo”, explicitamente bancado pelo governo federal (pense-se, por exemplo, no esforço de Mário Hermes da Fonseca, filho do Presidente da República, para a criação do “peleguismo” no IV Congresso Operário, realizado no Rio de Janeiro). No período que sucede imediatamente à Primeira Guerra Mundial, o movimento operário tem a sua dinâmica fundada no confronto entre estas duas tendências. E suas formas de intervenção eram, é óbvio, inteiramente diversas: os anarquistas jogavam forte na criação de condições ideológicas constitutivas da consciência classista (sua ênfase na educação e na imprensa independente são seus traços característicos) e apostavam na ação direta; os “amarelos” incorporavam a ideologia da colaboração de classes e se subordinavam às diretrizes legal-institucionais da oligarquia.

Caros Amigos - Como foi o processo que resultou na criação do PCB? Quais foram as forças que o formaram?

Se não estou em erro, diria que o PCB (fundado em março de 1922) resulta da confluência de dois vetores: o exaurimento do poder de atração do anarquismo entre os trabalhadores e o impacto da Revolução de Outubro. A greve de 1917, que pôs a correr, em São Paulo, as autoridades e deixou a capital nas mãos dos trabalhadores – ponto mais alto da intervenção anarquista em nosso país –, também deixou a nu a incapacidade do anarquismo para tratar a questão do poder. O impacto da Revolução Russa conferiu grande prestígio (o que, aliás, foi um fenômeno mundial) ao comunismo, num primeiro momento inclusive entre os anarquistas. Evidentemente, não se esgotam nestes dois vetores as bases para o surgimento do PCB – para compreendê-lo, é necessário observar as mudanças societais que estavam em curso, mesmo larvares, no país, que alteravam claramente a estrutura de classes e as práticas políticas (pense-se, aqui, no que o “tenentismo” sinalizava) e atingiam inclusive as expressões estéticas (não é casual, ainda que expressando posições de classe muito diversas, que o PCB seja coetâneo ao Modernismo). Importa observar que o surgimento do Partido Comunista no Brasil, à diferença do ocorrido em muitos outros países, inclusive da América Latina, não se beneficiou da existência do que podemos designar como “cultura socialista”: aqui, o peso do anarquismo na fundação do PCB (lembre-se que o nome mais conhecido dentre os fundadores era o de Astrogildo Pereira, que provinha do anarquismo) foi hipertrofiado precisamente pela ausência de qualquer outro componente significativo de esquerda – não é por acaso que, no PCB, manifestam-se precocemente divergências de monta (por exemplo, já em 1927-1928).

Caros Amigos - Como se desenvolveu a esquerda durante o Estado Novo, o que ela enfrentou, como atuou?

O Estado Novo se ergue após uma séria derrota da principal força de esquerda operante no país a partir do segundo terço da década de 1930 – refiro-me ao PCB que, após a ilegalização da Aliança Nacional Libertadora (que, de fato, era uma frente que incluía outras forças além do PCB), lidera a tentativa de tomada do poder em novembro de 1935. Durante os anos de 1938 a 1943, período em que o Estado Novo se manteve em face de uma oposição imobilizada pela repressão (mas não só), a intervenção da esquerda foi praticamente nula. O próprio PCB (que, à época, assistiu ao surgimento de outras frações comunistas, como, por exemplo, aquela animada por Hermínio Sacchetta) praticamente desaparece como organização entre os finais dos anos 1930 e a realização da célebre “Conferência da Mantiqueira” (1943). É somente a partir de 1943 – e não se subestime nisto a viragem que ocorre no decurso da guerra, especialmente após a vitória soviética em Stalingrado – que se pode falar de uma retomada da intervenção da esquerda, inclusive com o surgimento de uma esquerda não-marxista.

Caros Amigos - E durante o intervalo democrático entre 45 e 64?

Penso que devemos ter alguma cautela ao mencionar o período 1945-1964 como um “intervalo democrático” – não nos esqueçamos que o Governo Dutra foi emblemático da Guerra Fria que nascia com o seu zoológico anticomunismo: foi, dos governos “constitucionais”, um dos mais, senão o mais, antidemocrático que tivemos. A repressão que então se abateu sobre o movimento operário-sindical responde, em grande medida, pela interrupção do crescimento da esquerda, visível em 1945-1946. Mas esta repressão não impediu a intervenção significativa da esquerda, seja no próprio período Dutra (evoque-se o papel do Partido Comunista na luta rural de Porecatu, no Paraná), seja na abertura dos anos 1950, em especial no movimento operário-sindical, quando os comunistas estabelecem, de fato, uma aliança com setores do Partido Trabalhista Brasileiro (o PTB de Vargas).

A meu juízo, é na segunda metade da década de 1950 – mais precisamente, após o suicídio de Vargas e a intentona golpista de 1955 – que podemos registrar um efetivo crescimento da esquerda no país. No período posterior a 1955, são constituintes deste crescimento dois fenômenos: a crise e a recuperação do PCB e o surgimento de forças de esquerda independentemente da influência do PCB. Conhece-se a crise do PCB na imediata sequência do XX Congresso do PCUS (fevereiro de 1956): a chamada “denúncia do culto à personalidade” de Stalin leva o PCB, desde 1945 fortemente stalinizado, a uma crise que põe o partido no fundo do poço. Somente em 1958, mediante uma “nova política” (cuja formulação inicial está na discutida “Declaração de Março”), o partido dos comunistas ganha um novo fôlego, que lhe permitirá ser uma referência nos anos seguintes (apesar da fratura que sobrevém em 1962 e que dá origem ao PC do B).

Mas é também no fim dos anos 1950 que surgem núcleos de esquerda, marxistas e revolucionários, que não carregam a hipoteca do stalinismo que marcara o PCB. Este movimento, que se tornará inteiramente visível na entrada dos anos 1960 e que enriquece a esquerda, não expressa tão somente a dinâmica da sociedade brasileira, mas também sinaliza giros ocorrentes em outras experiências políticas (ademais da Revolução Chinesa, incide aqui, poderosamente, o influxo das lutas de libertação nacional em todo o à época denominado Terceiro Mundo e, particularmente nos anos seguintes, da Revolução Cubana). Creio que é preciso estudar com mais cuidado estes anos férteis para a esquerda brasileira, quando o PCB perde o monopólio do marxismo entre nós – e o marxismo se espraia para muito além das fronteiras do PCB.

A transição dos anos 1950 aos 1960 é de crescimento (inclusive orgânico-partidário) da esquerda brasileira – e isto vale, a meu juízo, tanto para o PCB como as outras frações emergentes fora do circuito da tradição marxista. Penso na constituição de setores socialistas em partidos inteiramente alheios a esta tradição (basicamente no PTB) e no aparecimento de segmentos socialistas laicos vinculados a diferentes igrejas, embora com visibilidade maior para os de extração católica (em função, inclusive, do ponderável redirecionamento da Igreja a partir do papado de João XXIII). É mais ou menos claro que este crescimento da esquerda (e, em todas estas respostas, estou designando por “esquerda” um leque muito amplo e heterogêneo de forças, cujo denominador comum me parece ser o antiimperialismo e a crítica à ordem burguesa numa perspectiva voltada para o futuro, excluindo-se, pois, o anticapitalismo romântico próprio da direita restauradora) expressou, naqueles anos, um efetivo processo de democratização da sociedade brasileira – processo ele mesmo relacionado às mudanças estruturais em curso (consolidação da industrialização substitutiva de importações, urbanização etc.).

Caros Amigos - O que representou o golpe de 64 para a esquerda no Brasil?

Entendo o golpe do 1º de abril conforme a brilhante caracterização de Florestan Fernandes: foi parte de um processo mundial de contra-revolução preventiva. Representou, para as massas trabalhadoras brasileiras, a liquidação de um processo de democratização que certamente conduziria a profundas modificações econômico-sociais, capazes de desobstruir a via para o rompimento da nossa heteronomia econômica. Para a esquerda, foi uma derrota de enormes implicações.

Também entendo que a esquerda laborou em equívocos e cometeu erros que facilitaram o golpe e a instauração da ditadura. Mas, ao contrário de muitos analistas, não debito a derrota de abril aos equívocos e erros da esquerda: o golpe, parte da mencionada contra-revolução preventiva, deve ser explicado pela natureza da dominação de classe exercida no Brasil pela burguesia. Naquele momento, incapaz de ser classe dirigente, ela escolheu, conscientemente, enquanto classe, ser classe dominante – e armou um esquema de alianças, nacionais e internacionais, que lhe possibilitou, durante quase 20 anos, instaurar o que o mesmo Florestan designou como autocracia burguesa.

Caros Amigos - Como avalia as diversas organizações que surgiram no pós-golpe? Por que foram tantas, por que eram tantas correntes? Porque não conseguiram se unir?

A unidade entre as forças reacionárias e/ou conservadoras nunca constituiu um problema de vulto na história política do século 20 – e se compreende a razão: seus interesses econômicos têm fundamentos comuns e estão enraizados no presente. No quadro da esquerda, a unidade é sempre problemática, porque os enlaces se dão mais na prospecção do futuro do que na defesa de interesses materiais imediatos; é problemática, mas possível, como resultado de longos processos de debates, do conhecimento da experiência histórica, de combates prévios travados em comum e, sobretudo, do próprio nível de consciência das massas trabalhadoras, conquistado em suas experiências diretas. Frente a um inimigo comum – como era o caso da ditadura instaurada em 1964 e cujo caráter de classe se explicitou, sem deixar margem a dúvidas, em 1968, com o AI-5 – seria esperável a constituição de uma unidade entre as forças de esquerda. Sabemos que isto não ocorreu. Muitas foram as causas da dispersão de esforços e de combates. Penso que parte delas estava inscrita na análise que as diferentes forças fizeram (ou deixaram de fazer) da natureza do regime instaurado em 1964 e, ainda, das causas que permitiram a vitória das forças de direita. Mas também pesaram as concepções estratégicas quanto à derrota da ditadura, a extração de classe dos resistentes e a conjuntura ideológica da época. Substantivamente, pesou igualmente a ponderação diferente que as várias forças de esquerda (profundamente debilitadas, pela repressão sistemática a que foram submetidas, em sua relação com as massas trabalhadoras) faziam do papel a ser desempenhado por estas mesmas massas.

Caros Amigos - Como a luta de massa se organizou na segunda metade dos anos 70?

Parece-me que estavam na direção mais correta aquelas forças (e este foi, entre outros, o caso do PCB) que entendiam a derrota da ditadura como resultado de lutas de massas. O fracasso do “modelo econômico” da ditadura (evidenciado claramente a partir de 1974-1975), as divisões que começaram a erodir a estreita base política do regime de 1964 e, sobretudo, a até então lenta reinserção da classe operária na cena política criaram as condições para que a resistência democrática deixasse os nichos em que subsistia e ampliasse o seu raio de influência. Frentes de luta até então subestimadas (contra a carestia, pela anistia e mesmo processos eleitorais) ganharam uma ponderação até então insuspeitada para muitos setores da esquerda.

Caros Amigos - Qual foi o papel desempenhado pelo sindicalismo no período pré-democratização?

Aqui, a resposta é simples: foi absolutamente fundamental. Mediante a ação do movimento operário-sindical é que se processou a reinserção das massas trabalhadoras (especificamente do proletariado) na cena política brasileira. Até então, a oposição e a resistência à ditadura tinham uma incontestável hegemonia burguesa (não se deve subestimar o papel do falecido Movimento Democrático Brasileiro/MDB); mediante a ação operário-sindical, que começa a ganhar vulto a partir de 1976-1977, a oposição burguesa é afetada, sua hegemonia na resistência institucional é ameaçada e a erosão do regime se acelera.

Caros Amigos - Qual foi a importância da esquerda no fim da ditadura e na redemocratização do país?

Já assinalei que a reinserção da classe operária na cena política, no último terço da década de 1970, foi o componente central para a derrota da ditadura. Foi através da dinamização do movimento sindical que esta inserção se viabilizou – e teve como efeito a catalização das demandas democráticas numa escala até então inimaginável, arrastando amplos setores das camadas médias, da intelectualidade e até mesmo de segmentos burgueses prejudicados no marco do “modelo econômico”. Não penso que este arco de forças, originalmente, possa ser visto como uma criação da esquerda – embora novos setores de esquerda e antigos militantes, que puderam sobreviver à repressão, tenham tido papel significativo na sua constituição. Mas é indiscutível que, com o quadro novo criado pela movimentação operário-sindical, distintas forças de esquerda, operando em especial a partir do fim do AI-5 e da anistia, deixaram a sua marca no processo de derrota da ditadura.

Caros Amigos - Como avalia o processo de surgimento do PT, da CUT e do MST?

Entendo que o surgimento do PT e da CUT estão diretamente ligados ao que designo como reinserção da classe operária na cena política brasileira – diria que ambos, emergentes nos anos 1980, são um fruto daquele processo. E um processo daquela relevância origina naturalmente, numa sociedade diferenciada e complexa, tal como já se apresentava a nossa na abertura daquela década, distintas expressões políticas. Nas suas origens, embora militando noutra organização política, vi o surgimento de ambos como algo basicamente positivo – porém, sempre tive preocupações em relação ao seu futuro, preocupações referidas à retórica “esquerdista” e sectária (quem não se lembra daquela bobagem eleitoreira de “trabalhador vota em trabalhador”?), às ligações internacionais (especialmente no caso da CUT) e, muito especialmente, à ignorância (nalguns casos, o desprezo) em relação ao passado de lutas dos trabalhadores e das outras forças de esquerda. Mas, à época, debitei tudo isto à necessidade natural de constituir uma identidade partidária e confiei em que a presença de lideranças expressivas de lutas sociais precedentes poderia fazer amadurecer esta identidade num sentido efetivamente de esquerda.

Penso que é diferente o caso do MST. Também fruto das condições que levaram à derrota da ditadura, o MST, a meu juízo, tornou-se um movimento verdadeiramente autônomo, com objetivos muito claros e uma estratégia de luta flexível e que leva em conta a experiência do passado. É bastante provável, em função das aceleradas transformações operadas no campo, que o movimento seja, na atualidade, compelido a repensar-se e a repensar a natureza e a função das suas lutas – mas me parece o único protagonista político significativo que põe em prática algumas referências próprias da esquerda, como a sistemática formação política e a solidariedade internacionalista.

Caros Amigos - O que representaram para a história da esquerda as eleições de 89?

O balanço, feito à distância, do processo eleitoral de 1989 é paradoxal. De uma parte, mostrou a força das aspirações democráticas num momento preciso – o saldo eleitoral, do ponto de vista imediato, foi notável: demonstrou a possibilidade efetiva de derrotar, nos marcos da institucionalidade formal, as forças da direita, desde que se realizasse, ainda que momentaneamente, uma unidade da esquerda e de setores democráticos (recorde-se que tanto os partidos comunistas quanto Covas e Brizola apoiaram Lula no segundo turno). De outra parte, o ganho organizativo, para o conjunto da esquerda, parece-me que foi pouco mais que residual – não teve a menor simetria com o ganho eleitoral.Mas é preciso dizer outra coisa importante: ficou claro que a grande burguesia, em processos eleitorais minimamente democráticos, não tinha, no final dos anos 1980, a menor chance de se viabilizar se apresentasse o seu próprio rosto (Collor nunca passou de um aventureiro político, que não expressava organicamente os interesses do grande capital; foi apenas um instrumento para evitar a vitória de Lula). E a grande burguesia aprendeu a lição: no processo eleitoral seguinte, foi obrigada a usar, para a defesa das suas posições, a maquiagem da esquerda – daí o seu apoio a FHC.

Caros Amigos - Como vê os rumos do PT desde então?

A resposta a esta questão já está implícita linhas acima e, de algum modo, inclui a pergunta subsequente. Os anos 1990 foram de um discreto, aparentemente suave e efetivo deslizamento do PT para o centro – já no primeiro confronto com FHC, desenhava-se o “Lulinha paz e amor”. Ao que parece, no fim da década, a esquerda foi inteiramente neutralizada no interior do PT – isto não significa, a meu juízo, que desde então deixaram de estar presentes no PT militantes de esquerda sérios, responsáveis e confiáveis. Mas tudo indica que são algumas rosas vermelhas num grande campo de braquiária. Posso estar enganado, mas, a partir de 2003, o PT converteu-se no gestor preferencial, para a grande burguesia, deste país. Permita-me recorrer a algo menor, mas que me parece extremamente simbólico: semana passada, a grande imprensa noticiou que o ex-presidente da República fez uma viagem ao exterior num jatinho de empresa do Grupo Gerdau, mantendo agradável palestra com o patriarca da família. Não sei se é fato, mas sei que é emblemático. Emblema de que já tivemos prova, aqui no Rio de Janeiro, há tempos: quando do falecimento de Roberto Marinho, Lula veio ao velório acompanhado de um séquito de ministros; no velório de Brizola, brilhou pela ausência.

Caros Amigos - Quais foram os efeitos da década neoliberal na esquerda brasileira?

Os efeitos – ainda que indiretos, mediatos e que precisam ser relacionados aos impactos derivados da queda do “Muro de Berlim” – foram catastróficos em todo o mundo e não se limitaram, obviamente, ao universo ideológico e ao imaginário político: o preço da ofensiva do grande capital foi e está sendo pago pelas massas trabalhadoras do mundo inteiro.

Sobre a esquerda brasileira, os efeitos foram imediatamente deletérios: o generalizado abandono do ideário socialista e, no limite, a sua conversão numa social-democracia tíbia e tardia. Forças que no passado tiveram expressiva participação na luta contra a ditadura e pela democratização do país converteram-se ou em abertos porta vozes da ordem (o caso do PT é certamente gritante, mas não se esqueça o posicionamento junto com o DEM – com o DEM! – que os ex-comunistas do PPS hoje efetivam) ou abdicaram do seu programa e da sua autonomia na prática política (o caso do PCdoB). Evidentemente, estamos defrontados com um processo social profundo, que não pode ser creditado a personalidades ou a oportunismos de ocasião. De qualquer forma, impera na esquerda “reciclada” pela ideologia dessa coisa realmente reacionária que grosseiramente se chama neoliberalismo um cinismo assombroso: ex-guerrilheiros que se tornaram paladinos da “cidadania”, ex-líderes sindicais outrora extremamente radicais defendendo/teorizando os/sobre a importância econômica e democrática de fundos de pensão, ex-expoentes de partidos comunistas predicando que a questão central sob o capitalismo está na distribuição e não no modo de produção e coisas que tais.

Caros Amigos - O que representou a eleição de Lula em 2002 para a esquerda brasileira? Como avalia desde então as forças de esquerda no país?

Do ponto de vista político imediato, o resultado eleitoral de 2002 foi uma derrota da direita e dos conservadores, uma derrota do grande capital. Do ponto de vista simbólico, foi extremamente importante a vitória de um líder político de extração operária.

Mas uma coisa foi a vitória eleitoral e outra, muito diversa, o desempenho político: a enorme legitimidade que as urnas conferiram a Lula para empreender a caminhada no sentido das grandes transformações econômicas e sociais foi direcionada para outro rumo – à base da reiteração do fisiologismo político, a adequação do minimalismo da política social à orientação macro-econômica de interesse do grande capital. Lula realizou uma eficiente gestão do status quo.

Que fique claro que estou longe de equalizar Lula (e tudo o que ele representa e expressa) a um líder submisso à direita e aos conservadores ou um mero instrumento do grande capital – mas seus dois períodos presidenciais estiveram aquém, inclusive, de uma prática política “possibilista”. E seu principal papel, no que tange à esquerda, foi desqualificá-la como capaz sequer de um governo “diferente” – e não será fácil, para a esquerda, livrar-se desta herança.

Caros Amigos - Por fim, como o senhor avalia o atual momento da esquerda brasileira?

Penso que se trata de uma conjuntura extremamente difícil (e, insisto, trata-se de um quadro mundial, que não diz respeito somente ao Brasil). O espectro da esquerda orgânica (bastante diferenciada: PCB, Psol, PSTU) e da esquerda que ainda subsiste no interior de alguns partidos (nomeadamente no PT) não reflete minimamente o peso potencial, mesmo que hoje minoritário, da esquerda na sociedade brasileira (como se pode constatar em movimentos como o MST e em grupos políticos minúsculos, mas que podem ser expressivos futuramente). Como escrevi há algum tempo, o nosso déficit é organizacional e ele não será superado da noite para o dia – temos, a esquerda, um longo caminho a percorrer.

A longo prazo (por mais que esta expressão provoque um sorriso nos keynesianos), sou otimista. As contradições e impasses da ordem do capital, inclusive como se apresentam na periferia, são insolúveis no seu marco – não há Bolsa Família, mesmo ampliado, que os resolva. As tensões acumuladas na nossa formação social não podem ser anestesiadas sem limites. Tenho, para mim, que está e continua em curso um processo de fundo que implicará numa agudização das lutas de classes. Se a normalidade da democracia formal não sofrer interrupção, a esquerda poderá perfeitamente superar a sua debilidade organizacional – desde que trabalhemos forte já desde agora – e cumprir o que dela se espera: vencer a cronificação da barbárie pelo avanço na direção do horizonte socialista.

José Paulo Netto é professor emérito da UFRJ e professor da Escola Nacional Florestan Fernandes.

Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/noticias/1901-especial-esquerda-brasileira-jose-paulo-netto-qimpera-na-esquerda-reciclada-um-cinismo-assombrosoq