quinta-feira, 12 de março de 2009

Mallu Magalhães (2008)

Frequentemente, ouve-se falar que o rock não é apenas música, mas também atitude ou estilo de vida, o que seria mais um elemento que o diferenciaria de outros estilos "puramente" músicais, se é que isso de fato existe. John McCrea (vocalista do Cake) já tratou disso ironicamente em uma de suas músicas (em Rock And Roll Lifestyle). O grande risco que se corre é a relevância dada ao componente "estilo de vida" do rock poder ter uma tendência a maximizar-se e tornar-se independente da própria música, abrindo precedentes para que surjam fenômenos como o emocore e seus adeptos - com suas roupas, cabelos, pranchas, pulseiras e simples distorções de guitarra - reinvindicando para si o título de rockeiros do momento.

Digo isso, porque não tem nada mais oposto da figura tradicional do rockeiro e da rockeira do que a Mallu Magalhães. Sabe-se que o rock pega as pessoas já pela tenra idade, mas, segundo o padrão tradicional, essas pessoas têm que se submeter a uma espécie de rito de passagem, onde aprende-se a experimentar drogas das mais variadas, ter predileção por uma aparência mais desleixada ou intencionalmente casual (de preferência, com uso de roupas com tons mais escuros), personificarem a filosofia do carpe diem radical e ter um forte senso de auto-destruição. Uma das figuras femininas mais célebres é a Joan Jett, que traz consigo ainda o tom provocativo do timbre vocal. A Mallu Magalhães não tem nada disso e, a despeito das discordâncias que possam surgir sobre sua música, tem suas influências marcadamente no rock. E como não ser flagrado em repentes de ternura ao ouvir sua voz de menina?

Bem, o que de fato me gera curiosidade é tentar imaginar como seria se o reconhecimento da Mallu viesse mais tarde, por exemplo, aos 25 anos, depois de ter passado por todos os passos do rock and roll: das bandas de garagem, às casas noturnas e suas mais diretas consequências. Qual seria o seu apelo?







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Luís Fernando Veríssimo - Onde Estamos

Exemplo de aplicação divertidíssima a la Veríssimo do princípio de desconfiança de Bertold Brecht. Segue o texto:

De tanto repetirem que o Brasil não é a Rússia, comecei a desconfiar. Será que não é? Este governo tem-se esforçado para nos convencer de que o Brasil que a gente vê não é o Brasil de verdade, é outro país. E se é outro país, por que não pode ser a Rússia? Agora, toda vez que eu

saio de casa e dou com o Brasil que a propaganda do governo diz que não é o Brasil, começo a prestar atenção. Se não é o Brasil, que país é este? Onde, afinal, nós estamos?

Não se vê nenhum sinal ostensivo de que estamos na Rússia. Os indícios, se existem, estão muito bem camuflados. Neva em alguns lugares do Sul do Brasil, no inverno, mas nada comparável à Rússia, onde neva em toda parte a toda hora. Mas quem nos assegura que o próprio clima tropical não faz parte da dissimulação? Se o Brasil é mesmo tão tropical assim, por que tem que fazer tanto calor com tanta freqüência, como se estivessem preocupados em enfatizar justamente a nossa diferença da Rússia? O mesmo pode ser dito da nossa paisagem, tão convenientemente o oposto das estepes russas. Conveniente demais.

Alguns cartazes que você vê na rua têm as letras invertidas — como se sabe, russo é de trás para diante — mas aí não é russo, é erro de português mesmo. Ou serão recaídas no alfabeto russo por dissimuladores distraídos? Há muita coisa escrita em inglês, o que também é suspeito. Durante muito tempo, Rússia e Estados Unidos foram arquiinimigos. Se você quisesse convencer alguém de que o Brasil definitivamente não é a Rússia, não tem jeito de ser a Rússia, é até uma anti-Rússia, qual seria a melhor maneira de fazer isso? Convencendo-o de que o Brasil é os Estados Unidos, claro. Quanto mais vejo apóstrofes, nomes em inglês, filmes americanos e mac-chickens, mais me convenço de que estamos na Rússia.

Outra coisa: a imprensa. Tentam disfarçar, mas a imprensa Dbrasileira cada vez mais se parece com a imprensa russa. A própria insistência com que nos dizem que o Brasil não é a Rússia reforça a desconfiança de que estamos na Rússia, pois a imprensa russa não fazia outra coisa senão tentar convencer os russos de que o país que eles viam também não era a Rússia, que a Rússia de verdade era a da propaganda do governo. Quanto mais os jornais nos asseguram que o Brasil não é a Rússia, mais desconfiamos de que estamos lendo versões do Pravda com as letras trocadas.

Há outras semelhanças que fazem pensar e desconfiar. Nós também saímos de um período de economia dirigida para um período de economia aberta que culmina com um período de economia mafiosa, com a única diferença que a máfia russa — realizando um sonho das máfias de todo o mundo, que até agora não tinham passado da bazuca — tem armas nucleares. No Brasil, como na Rússia, também há gangues organizadas brigando pelo espólio do estatismo enquanto o povo fica à parte, convencido pela propaganda do governo que o dele já vem. E tanto lá como aqui, se é que aqui não é lá, tudo se deve a uma rendição incondicional a um charlatão oxigenado chamado Mercado, que teria as respostas para tudo.

Sei não, numa dessas caem os disfarces e se revela que o Brasil é, sim, a Rússia. Como o inverno russo se aproxima, acho que vou comprar um gorro de pele. Pelo menos salvo as orelhas.

(Extraído do Livro "Aquele Estranho Dia Que Nunca Chega", a "Era Éfe Agá", pp. 13-14)