quarta-feira, 25 de julho de 2012

Estou Lendo: "A Sagrada Família", de Marx e Engels

3. O Amor (Karl Marx)

A fim de atingir a perfeição da "Quietude do conhecer", a Crítica crítica tem de procurar desembaraçar-se, antes de tudo, do amor. O amor é uma paixão e não há nada mais perigoso para a Quietude do conhecer do que a paixão. Eis aqui o motivo pelo qual, a propósito dos romances da senhora Von Paalsow - que ele garante ter "estudado minuciosamente" -, o senhor Edgar logra manter o domínio sobre uma "criancice semelhante ao chamado amor". Uma coisa dessas é um pavor e um horror, que atiça a Crítica crítica à fúria, tornando-a quase amargamente biliosa, levando-a à loucura inclusive.

"O amor... é um deus cruel que, assim como toda a divindade, quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico. Seu culto é o sofrimento e o ápice desse culto é o auto-sacrifício, o suicídio."

A fim de metamorfosear o amor em "Moloch", no diabo em carne e osso, o senhor Edgar transforma-o primeiro em um deus. Feito deus, quer dizer, transformado em objeto teológico, ele passa com naturalidade ao domínio da Crítica da Teologia, além do que, deus e o diabo jamais andam muito distantes, conforme se sabe. O senhor Edgar transforma o amor em um deus e em um "deus cruel", seja dito, ao fazer do homem enamorado, ou seja, do amor do homem, o homem do amor, ao colocar o "amor" à parte do homem como ser, autonomizando-o. Através desse simples processo, através dessa metamorfoseação do predicado no objeto, podem-se transformar criticamente todas as determinações essenciais e todas as manifestações da essência do homem em não-essência e em alienações da essência. Dessa maneira, por exemplo, a Crítica crítica faz da crítica, enquanto predicado e atividade do homem, um sujeito à parte, que diz respeito apenas a si mesmo e é, por isso, Crítica crítica: um "Moloch" cujo culto é o auto-sacrifício, o suicídio do homem, ou seja, da capacidade humana de pensar.

"Objeto, exclama a Quietude do conhecer, objeto, é esta a expressão correta, pois a amada só é importante para o amante - o feminino na condição de amante pouco importa - enquanto esse objeto externo de sua afecção anímica, enquanto objeto no qual ele quer ver seu próprio sentimento egoísta satisfeito".

Objeto! Pavoroso! Não há nada mais condenável, mais profano, mais massivo do que um objeto - a bas* o objeto! Como poderia a absoluta subjetividade, o actus purus**, a crítica "pura" não ver no amor a sua bête noire***, seu satanás em carne e osso; o amor, que é o primeiro a ensinar de verdade ao homem a crer no mundo objetivo fora dele, que não apenas faz do homem um objeto, mas também do objeto um homem?

O amor, conforme prossegue a Quietude do conhecer, totalmente fora de si, nem sequer se contenta sem transformar o ser humano na categoria de "objeto" para outro ser humano, mas inclusive o transforma em um objeto determinado e real, ou seja, neste objeto individual-mal (vide a "Fenomenologia" de Hegel acerca do Este e do Aquele, na qual se polemiza também contra "Este" mau), externo, um objeto não apenas interior e esquecido no cérebro, mas também manifesto e aberto aos sentidos.

"Amor
Não vive apenas encastelado no cérebro."

Não, a amada é objeto sensual e a Crítica crítica exige, pelo menos - quando tem de se rebaixar ao reconhecimento de um objeto -, um objeto insensato. Mas o amor é um materialista acrítico, acristão.

No fim das contas o amor chega a transformar o homem "neste objeto externo da afecção anímica" de outro homem, no objeto sobre o qual este outro homem satisfaz seu sentimento egoísta; sentimento egoísta porque procura sua própria essência no outro homem, e assim não deve ser. A Crítica crítica é tão livre de qualquer egoísmo, que para ela todo o caráter abrangente da essência humana se reduz a seu próprio eu.

O senhor Edgar naturalmente não nos diz através do que a amada se diferencia dos restantes "objetos externos da afecção anímica, nos quais os sentimentos egoístas dos homens se satisfazem". O espirituoso, plurívoco e eloquente objeto do amor consegue dizer à quietude do conhecer apenas o esquema categórico: "esse objeto externos da afecção primária", assim como o cometa, por exemplo, não revela ao filósofo especulativo da natureza mais do que a "negatividade". Ao fazer do outro homem o objeto externo de sua afecção anímica, o homem até lhe confere "importância", conforme a própria Crítica crítica confessa, mas essa importância é, por assim dizer, uma importância objetiva, ao passo que a importância que a Crítica crítica confere aos objetos não é nada mais do que a importância que ela confere a si mesma, e que por isso também não comprova sua competência no "ser exterior e mau", mas no "nada" do objeto criticamente importante.

Todavia, se a quietude do conhecer não possui nenhum objeto no homem real, ela possui, de outra parte, uma coisa na humanidade. O amor crítico "se guarda, sobretudo, de esquecer a coisa ao tratar da pessoa, coisa que não é outra senão a coisa da humanidade". O amor crítico não separa a humanidade do ser humano pessoal e individual.

"O amor em si, na condição de paixão abstrata, a gente não sabe de onde ele vem e ele vai saba-se lá para onde e é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior."

O amor é, aos olhos da Quietude do conhecer, uma paixão abstrata segundo a terminologia especulativa, que considera o concreto como abstrato e o abstrato como concreto.

"Do vale ela não nasceu
Donde ela veio, ninguém viu;
Mas seu rastro logo se perdeu,
Quando a moça se despediu"****.

O amor é, para a abstração, "a moça do estrangeiro", sem passaporte dialético, e por isso é expulsa do país pela polícia crítica.

A paixão do amor é incapaz de angariar o interesse de um desenvolvimento interior, porque ela não pode ser construída a priori, porque seu desenvolvimento é um desenvolvimento real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais. Porém o interesse principal da construção especulativa o "de onde" e o "para onde". O "de onde" é, por sinal, a "necessidade de um conceito, sua prova e dedução"(Hegel). O "para onde" é a determinação "através da qual cada um dos elos individuais do sistema circulatório especulativo, na condição de animado pelo método, é ao mesmo tempo o começo de um novo elo" (Hegel). Portanto, o amor apenas mereceria o "interesse" da crítica especulativa caso seu "de onde" e seu "para onde" fossem passíveis de ser construídos a priori.

O que a Crítica crítica quer combater com isso não é apenas o amor, mas tudo aquilo que é vivo, todo o que é imediato, toda a experiência sensual, toda experiência real, inclusive, da qual não se sabe com antecipação o "de onde" e o "para onde".

O senhor Edgar se estatuiu plenamente como "Quietude do conhecer", mediante a dominação do amor, e agora pode comprovar sua competência junto a Proudhon, demonstrando a grande virtuosidade do conhecer, para a qual o "objeto" já deixou de ser "este objeto externo", cometendo uma falta de amor ainda maior em relação à língua francesa.

---------------------------------------
* Abaixo
** Ato puro
*** Besta negra
**** Trecho do poema de Schiller "Das Mädchen aus der Fremde" (A Moça do Estrangeiro).

Extraído de MARX, K.; ENGELS, F. A Sagrada Família ou A Crítica da Crítica Crítica: contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2003, pp. 31-34.