Diretor: Bruno Nuytten
Elenco: Isabelle Adjani, Gérard Depardieu, Laurent Grevill
Formato: AVI Tamanho: 1,4 Gb
Downloadeie parte 1, parte 2
"Havemos de favorecer e ajudar aos necessitados e desvalidos. Hás de saber, Sancho, que este, que vem pela nossa frente, o capitaneia o grande Imperador Alifanfarrão, senhor da grande Trapobana; e estoutro, que marcha por trás das minhas costas, é o do seu inimigo el-rei dos garamantes Pentapolim do Arremangado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço direito nu. Este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está enamorado da filha de Pentapolim. Seu pai não quer dá-la ao rei pagão”.
Acordara cedo e, ainda enfrentando mal a agressão da luz na retina, olhou diretamente ao espelho e se viu como todo dia tem se visto: sonolento. Sobre a pia do banheiro, produtos de higiene pessoal, marcas registradas, materializações das propagandas que o acompanhavam onde quer que ele fosse. Todos os seus sentidos recebiam a interpelação marqueteira: a televisão no horário da refeição, a internet durante o trabalho, o carro de som e os outdoors no caminho para casa. Não sabe por que, mas hoje, ao olhar para o tubo de creme dental, não achou aquilo natural. Lembrou-se do filme a que assistira certa vez em uma aula de sociologia: um operário que, num processo de adoecimento/esclarecimento, passou a contabilizar o valor das coisas que tinha em casa por unidades de tempo de trabalho. Quanto tempo do seu trabalho custaria o creme dental? O que significa os R$ 3,78 ainda visíveis na etiqueta colada no tubo de plástico (lembrou que, quando criança, os tubos eram de alumínio)? Time is money, já dizia Benjamin Franklin e Walras tremia em ouvir.
Acordara sozinho. Sua mulher viajara havia uma semana e ligara apenas duas vezes. Do creme dental até chegar em sua cadeira na frente de terminal do call center onde trabalhava ele demora normalmente 1h e 15 min. Neste tempo, ele faz apenas consumir: a pasta de dente, a escova de dente, o sabonete, o desodorante, a água, o café, a bolacha de água e sal, a energia elétrica, a bateria do mp4 que ele pluga no ouvido para isolar-se do barulho urbano enquanto pedala até a empresa.
Neste dia, não concordou com o apresentador do jornal da manhã, apertou a mão do porteiro da empresa, cumprimentou seus colegas, bateu o ponto, pegou o copo de café, sentou, ligou o computador e prestou atenção em todo este automatismo. Como naqueles momentos em que enrubescemos diante de uma situação embaraçosa, era como se a vida dele se tornasse objeto de sua consciência. Enrubesceu, teve vergonha de si mesmo e, de repente, prometeu a si mesmo atingir a meta do dia determinada pela empresa. Seria hoje a quintessência do empregado padrão. Seu objetivo: ganhar o olhar do patrão que, normalmente, não se dá conta da sua existência. Com seu nome aparecendo no n° 1 do painel de produtividade do dia, era possível que seu patrão procurasse saber quem era o colaborador do dia. Seria convidado para um cappuccino? Ganharia uma piscadela, um sorriso, um gesto de “jóia!” e um afetuoso tapinha nas costas? Precisava de um pouco de atenção. Tinha saudades da mulher.
Foi por pouco! Vendeu 41 serviços, superou a média e a expectativa, mas perdeu por 4 para a garota do cubículo 45. A gratidão do patrão seria para ela hoje e ele pensava em alguma forma de compensar sua necessidade de afeto. Lembrou-se dos amigos do futebol, que não via há muito tempo, mas sua esposa não gostava que ele jogasse futebol enquanto ela viajava: ciúmes. Pensou na sua irmã, mas ela dava aula até tarde e acordava muito cedo para levar o filho para a creche. Mandou uma mensagem de celular para seu melhor amigo da infância, que morava em outra cidade e este respondeu dizendo que lhe mandara um email com as fotos de uma gostosa de Florianópolis. Pelo jeito, o afago esperado teria que ser novamente auto-concedido. Os velhos amigos realmente nos conhecem e são capazes de captar nossas necessidades mesmo à distância. Era o que ele podia fazer naquele momento.
Parou em frente a um bar, acorrentou a bicicleta ao tronco de uma pequena árvore, sentou a uma mesa, retirou os fones de ouvido e pediu um chopp. “É hora da happy hour”, dizia o banner. Ele queria sentir-se feliz. Enquanto esperava, dividia sua atenção entre a televisão que transmitia futebol e aquela que mostrava um show de dupla sertaneja. As pessoas começavam a chegar em grupos e ocupavam rapidamente as mesas vazias. Sozinho, ele percebeu que a alegria é coletiva e aumenta com a concentração etílica no sangue.
Inevitável foi ter sua atenção tragada para o meio das conversas alheias. Tinha duas alternativas: uma moral, outra cômoda. A primeira dizia para ele voltar a colocar os fones de ouvido e abstrair-se dos assuntos dos outros, com o benefício de lhe afagar a ética, a vantagem de preveni-lo de inconvenientes, mas com o prejuízo de aumentar o risco de um problema de ouvidos (o volume das conversas combinadas deveria ser superado pelo volume do fone) e de os outros pensarem ele como um freak deslocado. A segunda, por outro lado, alimentava sua curiosidade, saciava sua vontade julgar os outros pelas suas opiniões e dava a sensação ilusória de estar integrado de alguma forma àquela pequena multidão. Tinha ainda uma terceira, mas ele havia se comprometido consigo mesmo que, hoje, tomaria, pelo menos 3 copos de chopp: era para o que dava o que tinha no bolso, sem contar os 10%. Ficaria, portanto, até o fim.
Chegou o primeiro copo e os fones ficaram na bolsa. A conversa o envolvia, sua atenção se dirigia ora para a mesa dos engravatados, ora para a mesa das secretárias de clínicas de saúde, ora para os trabalhadores do comércio. Lembrou-se mais uma vez daqueles filmes que mostravam pessoas que se perturbavam em meio à multidão, pois percebiam os ruídos, o barulho, a confusão das vozes como se fossem um intromissão do coletivo ao seu supostamente quieto e calmo mundo particular. Não sentiu isso e pensou que algo naquela narrativa estaria errada. Talvez o pressuposto.
Não se sentia afrontado pelos outros e suas conversas banais. Sentia-se, isso sim, mal integrado. Queria participar, queria contribuir, queria ser necessário a eles, queria, talvez, justamente o contrário do filme, isto é, queria mesmo era ser reconhecido pela multidão. Queria dizer para o de gravata listrada que o seu discurso aparentemente tão original reproduzia ipisis literis a fala do apresentador do jornal da manhã a que ele havia assistido. Queria falar para as secretárias que compartilhava com elas da opinião de que os médicos estão tratando seus pacientes como caixa-eletrônicos. Queria perguntar aos trabalhadores do comércio como exatamente funcionavam os esquemas das semanais “promoções-cai-preços-de-tudo” das grandes redes comerciais. Não procurava identidade, não procurava alteridade, não procurava autoridade, procurava a vida social. A vida individual, a vida familiar, a vida de vizinhança já não lhe bastava. Queria se aproximar de desconhecidos para conhecê-los sem que isso fosse interpretado como uma cantada, como inconveniência, petulância, estranheza, enfim.
Limitou-se, entretanto, a tomar vagarosamente os outros dois copos. Evitou o garçom para não ter que encarar seu olhar de desprezo por não pagar os 10%: pagou diretamente no caixa. O julgamento do dono do bar lhe era indiferente. Desacorrentou a bicicleta, recolocou os fones e pedalou diretamente para casa.
Sua mulher estava em casa. Recebeu-o com um jantar e uma surpresa: estava grávida. Seu coração bateu mais forte e a emoção extravasou em um sorriso, uma lágrima e um forte abraço seguido de um longo beijo. Jantaram juntos, ela contou tudo o que acontecera na viagem, gozaram duas vezes, dormiram juntos depois de mais de uma semana.
Acordou no outro dia antes dela. Preparou-lhe um café da manhã, mas, como ela teria hoje um dia de folga, levantaria mais tarde. De frente ao espelho do banheiro, os produtos de ontem ainda o interpelavam. Não deu bola, asseou-se e saiu. Despediu-se da mulher com um beijo e um carinho atrás da orelha. Não viria almoçar.
No caminho até o trabalho sentiu-se melhor do que no dia anterior. Lembrou-se alegremente que nem precisou recorrer ao email do velho amigo. Reconhecia-se alegre e confortado, mas estava certo de que algo lhe faltava. Só não sabia o que era. Agiu conforme a liturgia diária ao chegar ao trabalho. Sentou-se em seu cubículo e percebeu que a menina do 45 já estava vestindo a camisa da empresa. Pensou na mulher e no futuro filho. Faltava alguma coisa.
Não fora o empregado do dia hoje também. Quem venceu foi o menino do 11: uma diferença de 1 para o menino do 13. Teve salgadinhos, pois era comemoração do aniversário do 22. Não ficou, foi embora rapidamente. Mesmo caminho, não entrou no bar, chegou em casa. Abraçou a esposa, acariciou-lhe a barriga. Olhou para porta. Faltava alguma coisa.
Os horrores cometidos pelos militares durante a ditadura já foi muito explorado pelo cinema brasileiro nesses 25 anos de redemocratização. De forma mais dramática (Zuzu Angel) e até mais inocente (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias) o tema não chega a ser novidade nas telas.
O documentário Cidadão Boilesen consegue escapar da mesmice por abordar uma vertente esquecida da questão. O regime totalitário seria impraticável e insustentável sem a ajuda da elite, que atualmente não apoia militares. Um desses financiadores da ditadura foi a dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen.
Um dos maiores méritos do filme é de tratar de um assunto tão sério sem ser entediante e ainda com atrativos sonoros e visuais. Infelizmente sabe-se que essa postura ainda é minoritária, com a infeliz ideia que seriedade não pode ser enfeitada. (Fica o recado para a visualmente hedionda coleção de livros Debates)
A pesquisa para o longa foi muito bem realizada, com matérias de jornais, cenas de filmes ficcionais sobre o assunto e até o contato com documentos confidenciais. As fotos de arquivo ganham animação, mas acabam ficando um tanto repetitivas mais para o final. No lado auditivo, a trilha musical animada não deixa a peteca cair.
Outra característica importante de Cidadão Bolesen é dar voz aos vários lados da questão, com pontos de vista muitas vezes conflitantes entre os depoimentos. O filho de Henning, revolucionários esquerdistas da época, políticos atuais e até militares reformados contam suas histórias.
Esse documentário é uma obra ímpar, que não deixa que a memória de nossa História seja deteriorada.