"Havemos de favorecer e ajudar aos necessitados e desvalidos. Hás de saber, Sancho, que este, que vem pela nossa frente, o capitaneia o grande Imperador Alifanfarrão, senhor da grande Trapobana; e estoutro, que marcha por trás das minhas costas, é o do seu inimigo el-rei dos garamantes Pentapolim do Arremangado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço direito nu. Este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está enamorado da filha de Pentapolim. Seu pai não quer dá-la ao rei pagão”.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
"Por Vezes", de Hans Magnus Enzensberger
mais inteligente ou mais estúpido do que tu -
não faças caso disso.
As formigas e os deuses,
acredita, sentem o mesmo.
Que exista mais gente na China,
digamos, que em San Marino,
não é uma desgraça.
A maioria das pessoas, sem dúvida, é
mais negra ou mais branca que tu.
Por vezes és um gigante,
qual Gulliver, ou um anão.
Em algum lugar ou outro estás sempre a descobrir
uma beleza ainda mais radiante,
alguém ainda pior.
És medíocre,
felizmente. Aceita-o!
Sete graus centígrados a mais
ou a menos no termómetro -
e estarias além da salvação.
sábado, 21 de janeiro de 2012
"Ainda não acabou a mania do discurso bonito", de Manuel Bandeira
Todavia não há motivos para desesperar. Houve alguma melhora, sensível em raros sinais que não terão escapado ao observador arguto. Por exemplo: o voluntário silêncio que se impuseram as vocações oratórias da geração que anda agora pelos trinta anos. O senhor Edmundo Luz Pinto é uma dessas vocações. Em outros tempos teria o renome de um grande orador. No entanto vive caladinho. Prefere fazer carreira por outras qualidades mais frias da inteligência. Assim os outros.
A geração anterior é que ainda não entregou os pontos. Volta e meia, e quando menos se espera, surge uma metáfora das brabas, um efeito como aquele do doutor Sampaio Correia no enterro de Amoroso Costa, o nosso grande matemático vítima da catástrofe do Santos Dumont*:
- Tão modesto na morte como o fora em vida, quis que o seu corpo fosse o último a aparecer...
Pois essa mania do discurso bonito foi o senão das solenidades com que se festejou a passagem do presidente Hoover. A recepção em si foi perfeita. Três dias de sol maravilhoso, sem grande calor. Programa folgado e bem escolhido. Ornamentação e luzes festivas sem excesso. Atitude do povo boa e discreta, como costuma ser a do brasileiro quando não está assanhado por amores.
Mas os discursos oficiais tiveram um derramado desagradável, uma falta de medida muito contrastante com o ar "all right let's go away"** do ex-comissário do Abastecimento Hoover.
Todos os discursos abusaram da nota sentimental, como se houvesse o propósito de captar com blandícias o yankee "matter of fact"***. Rodrigo Melo Franco de Andrade, o redator do "Boletim Internacional" do O Jornal, teve a esse respeito uma boutade magnífica.
Não pensem, disse ele, que num tratado de valorização do café o senhor Hoover transigirá "por simpatia, atendendo às relações que existiram entre Jefferson e o estudante brasileiro José Joaquim da Maia em 1786".
Um pouco de reserva, de resto bem compatível com a mais perfeita cordialidade, não fazia mal nenhum nas condições atuais em que a política do continente se orienta para uma volta difícil com a feição imperialista que vem tomando a civilização norte-americana. Eu sou dos que acreditam no perigo americano. Vejo no imperialismo da grande República uma força a que só a revolução social poderá fazer frente. Ora, os entendidos em questões econômicas acham com boas razões que o capitalismo americano ainda está longe da crise decisiva e terá ainda pelo menos um século para crescer.
Mesmo que o senhor Hoover partisse daqui muito enternecido pela paisagem carioca e pela lembrança das relações entre Jefferson e o estudante brasileiro, o seu sentimento individual nada valeria contra a força da plutocracia yankee, autocaminhão pesado em plena embalagem.
O que se passou com o presidente Wilson é bem significativo. O mundo inteiro via nele um idealista meio ridículo, embora em sua terra houvesse quem o considerasse, ao contrário, um hipócrita consumado.
Como quer que seja, antes da presidência ele pronunciava estas palavras memoráveis que um sul-americano desconfiado (o publicista uruguaio J. L. [...])**** assinalou para desengano dos abencerrages da democracia:
"Não é o povo que governa. Os patrões do governo são os capitalistas e os manufatureiros combinados. O governo dos Estados Unidos é o filho do peito de interesses especiais. Um império invisível estabeleceu-se por cima das formas democráticas. Estamos colhidos na engrenagem de um sistema econômico desapiedado".
O próprio governo de Wilson ilustrou com mais um exemplo essa advertência que nenhum sofisma pacifista pode obscurecer. Wilson foi colhido na engrenagem sem entranhas. Os casos do Haiti, do México, de São Domingos, da Nicarágua aí estão mostrando a potência inelutável de uma civilização a que mil interesses anônimos e formidáveis deram uma aceleração que só outras forças sociais igualmente formidáveis poderão contrastar. Enquanto elas não se levantam seria ao menos decente uma atitude de reserva e de humour em face de manifestações sentimentais de simpatia continenal. Eu bem sei que nessa matéria o brasileiro também é malandro... E quando o Utah saía barra fora, o carioca do cais gritou pra ele:
- Adeus, Hoover! Até amanhã se não chover!...
* Trata-se da queda do avião Santos Dumont, em 1928, quando morreram todos os seus ocupantes, na baía de Guanabara, por ocasião de homenagens a Alberto Santos Dumont, que chegava da Europa.
** Em inglês, "tudo bem, vamos embora".
*** Em inglês, "trivial".
**** Este trecho está ilegível no jornal.
BANDEIRA, Manuel. Crônicas Inéditas I: 1920-1931. São Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 155-158.
Entrevista de Karl Marx ao Chicago Tribune - Dezembro de 1878
A entrevista, publicada abaixo, permaneceu ignorada até o presente; foi um pesquisador novaiorquino Louis Lazarus, quem, há pouco tempo, redescobriu o texto. Ele houve por bem nos comunicar o seu achado, agregando diversas informações, o que lhe agradecemos vivamente.
Nem Marx nem Engels fazem alusão a esta entrevista nas cartas que, tanto quanto se sabe, trocaram entre dezembro de 1878 e princípios de abril de 1879. Talvez seja possível encontrar referências nas cartas endereçadas por Marx ou Engels a um terceiro ou, ainda, nas cartas trocadas no interior do círculo de seus íntimos. Seja como for, tais indícios, parece, não são necessários para estabelecer a autenticidade de uma entrevista que a ausência de qualquer desmentido, por parte dos interessados, é suficiente para demonstrar.
De fato, esta autenticidade está fora de dúvida. O teor da entrevista corresponde estreitamente àquilo que Marx e Engels escreveram à época, nas cartas e artigos por eles assinados, tanto quanto àquilo que disseram em seguida. Por certo, o jornalista americano poderia ter forjado "uma entrevista de Marx", a partir de documentos impressos ou mesmo de manuscritos que lhe tivessem caído sob os olhos. Mas é difícil conceber que ele se tenha deixado leva por esse joguinho, não ignorando que se arriscava, nesse caso, a se ver oposto a um rude desmentido. O repórter foi supreendido pelo conhecimentos dos textos legislativos e administrativos norte-americanos que Marx testemunhou diante dele; isso se explica facilmente quando se sabe que para redigir, entre outros, o II volume de O Capital, Marx recorreu, nesse assunto, a ajuda de Sorge e de Harvey. Durante a entrevista, Marx sublinhou certas particularidades do desenvolvimento da Alemanha: a aparição simultânea da grande indústria e de um partido operário independente, fato ressaltado ainda uma vez por Engels, cerca de dez anos mais tarde. E encontra-se, também da autoria de Engels, uma concepção análoga da imprensa como instrumento para manter os liames entre os diversos partidos operários, suscetível de atenuar, em certa medida, o eclipse da tribuna política da Internacional. E é ainda Engels quem, do ponto de vista socialista, se pronunciou publicamente, em termos quase idênticos, contra o tiranicídio. Quanto à ideia segundo a qual a política de Bismarck teria involuntariamente por função objetiva reforçar o movimento operário, é suficientemente conhecida. Também, e de maneira semelhante, negará mais tarde toda originalidade a Bismarck e sustentará que este último não havia podido realizar seus objetivos políticos. Por fim, Engels empregará uma linguagem muito próxima daquela da entrevista para denunciar as ameaças provocadoras do "Marechal de Ferro".
O Chicago Tribune, fundado em 1846, pendia para o lado dos republicanos; no momento da entrevista, seu chefe de redação era Joseph Medill, que era contado entre os amigos de Abrahan Lincoln. A tiragem do jornal era das mais elevadas para a época: a edição diária matutina (na qual a entrevista foi publicada) atingia mais de 25 mil exemplares, a edição tri-semanal vespertina ultrapassava dez mil e a do meio-dia, publicada uma vez por semana, estava em torno de cinquenta mil. O arquivista do Tribune nos fez o favor de precisar que a entrevista não foi inserida nas outras edições e que não existe nos arquivos do jornal nada que permita descobrir a identidade exata do correspondente "H". A entrevista data provavelmente da primeira semana de dezembro de 1878: Marx assinala com efeito a entrada em vigor do estado de sítio, que tinha sido proclamado em Berlim a 30 de novembro. E é impossível saber se Marx solicitou essa entrevista para comunicar aos trabalhadores norte-americanos as lições que deveriam ser tiradas das lutas de seus camaradas alemães, ou se ele se valeu de uma oportunidade inesperada para dar sua opinião, com máxima publicidade, sobre o agravamento da situação na Alemanha. O fato de que o Chicago Tribune fosse estranho ao movimento operário depõe a favor da segunda hipótese, porque nem Marx, nem Engels se encontravam, então, em contato direto com os diversos órgãos especificamente operários existentes na América. Três desses jornais, entretanto, retomaram em parte o texto da entrevista: o New Yorker Wolkszeitung e o Vorbote de Chicago publicaram, tanto um quanto o outro, uma versão alemã bastante defeituosa e, às vezes, adaptadas a fins propagandísticos evidentes; The Socialist, hebdomadário em língua inglesa de Chicago e "órgão oficial do Partido Socialista do Trabalho" reproduziu, por sua vez, a última resposta de Marx ao seu interlocutor. O órgão do partido dinamarquês, o Social-Demokraten de Copenhaguem, retraduziu o texto com base na versão do Vorbote.
O anonimato do entrevistador, a forma jornalística do texto e o fato de que Marx jamais tenha assinalado a existência dessa entrevista proíbem, certamente, que dela sejam tiradas conclusões devidamente estabelecidas, no que concerne a certos pontos de teoria e de história, tais como, por exemplo, a questão de saber em que medida os interesses dos partidos operários se diferenciam uns dos outros, e outras questões levantadas no curso dos vinte anos do intercâmbio epistolar entre Lassale e Marx. Mais ainda, é verossímel que nem o assunto nem a terminologia marxiana fossem muito familiares ao jornalista americano; também a entrevista, provavelmente, não deixa de ter algumas inexatidões e deformações. É, portanto, com essas restrições que o texto abaixo pode oferecer um complemento de informações para o conhecimento de Marx. Além dessas reservas e do fato de que o caráter de entrevista do texto não permite que lhe seja atribuída uma autenticidade absoluta, será preciso ainda se resignar aos deslizes de sentido que uma tradução inevitavelmente comporta.
As respostas de Marx foram traduzidas tão fielmente quanto possível a partir do original inglês. Não consideramos necessário reter os subtítulos, devidos à redação do Chicago Tribune, e substituímos pelas simples fórmulas "Pergunta" e "Marx", as expressões floreadas com que o entrevistador salpicou seu texto.
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Londres, 18 de dezembro (1878) - Karl Marx, fundador do socialismo moderno, mora numa pequena casa em Haverstock Hill, bairro do noroeste de Londres. Banido de 1844 de sua pátria, a Alemanha, por ter propagado teorias revolucionárias, vive desde então no exílio. Retornou ao seu país em 1848, mas foi expulso dois meses depois de seu retorno. Marx estabeleceu-se, em seguida, em Paris, 0nde, já no ano seguinte, suas ideias políticas lhe valeram uma nova expulsão. Desde então, fez de Londres o seu quartel-general. Suas convicções não cessaram, desde o primeiro dia, de lhe criar dificuldades e, a julgar pelo aspecto de sua casa, elas não lhe proporcionaram grande conforto. Durante todo este tempo, Marx pregou com uma obstinação indubitavelmente na certeza que tem da justeza delas. Por mais que se possa ser contrário à difusão dessas ideias, é preciso admitir que a abnegação deste homem, atualmente em idade venerável, merece uma certa apreciação.
Encontrei-me duas ou três vezes com o Dr. Marx, que me recebeu em sua biblioteca, sempre com um livro em uma mão e um cigarro na outra. Ele deve ter mais de sessenta anos. É um homem solidamente constituído, de ombros largos e porte ereto. Tem a fronte do intelectual e os modos do judeu culto; sua cabeleira e sua barba são longas e grisalhas; sombrancelhas espessas sombreiam seus olhos negros e brilhantes. Nada inclinado à circunspecção, reserva aos estrangeiros em geral a melhor acolhida. Todavia, o venerado alemão, que recebe o visitante, não aceita dialogar com qualquer de seus compatriotas senão quando este lhe apresenta uma carta de recomendação. Assim que se adentra à biblioteca e Marx tenha ajeitado o monóculo, maneira de assumir a postura intelectual, abandona a reserva que até aí demonstrara. Então ele expõe, diante do visitante cativado, seu conhecimento dos homens e das coisas de todos os recantos do mundo. Ao longo da conversa, longe de se revelar um espírito limitado, toca em tanto assuntos quantos são os volumes dispostos sobre as prateleiras de sua biblioteca. Pode-se julgá-lo a partir dos livros que lê. O leitor terá uma ideia quando lhe tiver dito o que me revelou uma rápida olhada às prateleiras: Shakespeare, Dickens, Tacheray, Molière, Racine, Montaigne, Bacon, Goethe, Voltaire, Paine; coleções administrativas (blue books) inglesas, americanas e francesas; obras políticas e filosóficas em russo, alemão, espanhol, italiano etc.
Para minha grande surpresa, nossos colóquios me revelaram que Marx conhecia a fundo os problemas americanos dos últimos vinte anos. A singular justeza das críticas que dirigia ao nosso sistema legislativo, tanto o da União quanto o dos Estados, me deu a impressão de que possuía dados de fontes bem informadas. Contudo, esse saber não se limita à América, mas engloba igualmente toda a Europa.
Quando chega a seu tema predileto, o socialismo, não se lança às tiradas melodramáticas que lhe são geralmente atribuídas. Atém-se a seus planos utópicos de "emancipação do gênero humano" com uma gravidade e uma energia que demonstram que está convencido que suas teorias se realizarão um dia, no próximo, se não for neste século.
O Dr. Karl Marx talves seja conhecido na América sobretudo por sua dupla qualidade de autor de O Capital e de fundador da Internacional, ou, pelo menos, como um de seus sustentáculos. A entrevista que se segue esclarecerá o que ele pensa desta associação na sua forma atual. Eis aqui, antes de mais nada, alguns excertos dos estatutos publicados em 1871 aos cuidados do Conselhor Geral, que permitem, a qualquer um, formar um juízo imparcial sobre o objeto e a finalidade da Internacional.
Durante minha visita, assinalei ao Dr. Marx que J. C. Bancroft Davis havia juntado ao seu relatório oficial de 1877 um programa que parecia ser, até o presente, a mais clara e concisa exposição dos objetivos do socialismo. Respondeu-me que esse programa fora extraído da ata do Congresso socialista de Gotha, realizado em maio de 1875, mas que a tradução estava repleta de equívocos. O Dr. Marx fez-me o favor de corrigi-la e transcrevo aqui o texto tal como me foi ditado:
1) Sufrágio universal, igual, direto, secreto e obrigatório a todos os cidadãos maiores de vinte anos e para todas as eleições gerais e comunais. O dia da eleição será um domingo ou um dia feriado;
2) Legislação popular direta. A guerra e a paz decididas pelo povo;
3) Nação armada. Substituição do exército permanente pela milícia popular;
4) Supressão das leis de exceção, notadamente das leis sobre a imprensa, reuniões e associações; em geral, de todas as leis que restringem a livre manifestação das opiniões, da liberdade de pensamento e de pesquisa;
5) Instituição de tribunais populares. Gratuidade da justiça;
6) Educação igual e geral do povo pelo Estado. Obrigação escolar. Instrução gratuita em todos os estabelecimentos escolares;
7) Máxima extensão possível dos direitos e liberdades, no sentido das reivindicações acima citadas;
8) Imposto único e progressivo sobre a renda, para os Estados e as comunas, em lugar de todos os impostos indiretos, especialmente daqueles que sobrecarregam o povo;
9) Direito ilimitado de associação;
10) Jornada de trabalho correspondente às necessidades sociais. Proibição dos trabalhos aos domingos;
11) Interdição do trabalho das crianças, bem como do trabalho cuja natureza prejudique à saúde e seja ofensivo à moral da mulher;
12) Leis de proteção à vida e à saúde dos trabalhadores. Controle sanitário dos alojamentos operários. Fiscalização do trabalho nas usinas, fábricas e oficinas, bem como do trabalho em domícilio, por funcionários eleitos pelos trabalhadores. Lei delimitando claramente as responsabilidades.
13) Regulamentação do trabalho nas prisões.
A comunicação de Bacroft Davis contém ainda um décimo segundo artigo, o mais importante de todos, que reivindica:"o estabelecimento de cooperativas socialistas de produção com a ajuda do Estado, sob o controle democrático da população trabalhadora".
Quanto pergunto ao Doktor por que ele omitiu este artigo, ele me responde:
Marx - Na época do Congresso de Gotha, em 1875, havia uma cisão na socialdemocracia. Os partidários de Lassale formavam uma de suas alas; a outra havia adotado em geral o programa da Internacional e era chamada de partido dos eisenachianos. O décimo segundo artigo, de que estamos tratando aqui, não pertencia ao programa propriamente dito, mas fora inserido na introdução geral como uma concessão aos lassalianos. Não se voltou a falar dele depois disso. O senhor Davis não se refere ao fato de que este artigo foi introduzido no programa a título de compromisso, sem nenhuma importância particular. No entanto, enfatiza-o, com a maior seriedade, como se se tratasse de um ponto fundamental.
Pergunta - Por que os socialistas não consideram, então, a passagem dos meios de trabalho à propriedade social coletiva como o grande objetivo do movimento?
Marx - Certamente, dizemos que tal será o resultado do movimento. É portanto uma questão de tempo, de educação e do desenvolvimento de formas sociais superiores.
Pergunta - Este programa é aplicável unicamente à Alemanha e a mais um ou dois países?
Marx - Extrair de um programa apenas essas conclusões seria desconhecer as atividades do movimento. Numerosos destes pontos não têm a menor significação fora da Alemanha. A Espanha, a Rússia, a Inglaterra e a América do Norte têm seus próprios programas particulares, adaptados às suas próprias dificuldades. O único ponto comum é o objetivo final.
Pergunta - E esse objetivo final é o poder operário?
Marx - É a emancipação dos trabalhadores.
Pergunta - Os socialistas europeus encaram com seriedade o movimento americano?
Marx - Sim. Esse movimento é o resultado natural do desenvolvimento desse país. Tem-se dito que lá o movimento operário foi importado do estrangeiro. Quando, há uns cinquenta anos, o movimento operário tinha dificuldades de abrir caminho da Inglaterra o mesmo foi pretendido. E isso muito tempo antes de se falar em socialismo! Na América, o movimento operário adquiriu, a partir de 1857, uma importância maior. Foi quando os sindicatos locais tomaram impulso, na sequência uma central sindical reuniu as diversas categorias profissionais, depois do que surgiu a União Nacional dos Trabalhadores. Esses progressos cronológicos demonstram que o socialismo nasceu na América, sem apoio estrangeiro, pura e simplesmente da concentração do capital e das mudanças ocorridas nas relações entre operários e patrões.
Pergunta - O que o socialismo conseguiu até hoje?
Marx - Duas coisas: os socialistas demonstraram que, em toda a parte, uma luta geral entre o Capital ao Trabalho, em suma, demonstraram seu caráter cosmopolita. Em consequência, procuraram efetivar um acordo entre os trabalhadores de diversos países. Esse acordo é tanto mais necessário visto que os capitalistas se tornam cada vez mais cosmopolitas. Não é somente na América, mas também na Inglaterra, França e Alemanha, que trabalhadores são engajados para serem utilizados contra os trabalhadores do próprio país. Criaram-se imediatamente vínculos internacionais entre os trabalhadores de diversos países. Eis o que provou que o socialismo não era unicamente um problema local, mas, antes, um problema internacional, que deve ser resolvido pela ação igualmente internacional dos trabalhadores. A classe operária põe-se espontaneamente em movimento, sem saber para onde o movimento a conduzirá. Os socialistas não criaram o movimento, mas explicaram aos operários seu caráter e seus objetivos.
Pergunta - Quer dizer, a derrubada da ordem social dominante?
Marx - Neste sistema, o capital e a terra são propriedade dos empresários, enquanto o operário não possui nada além de sua força de trabalho, que é constrangido a vender como uma mercadoria. Afirmamos que este sistema não constitui nada mais do que uma fase histórica, que ele desaparecerá e cederá lugar a uma ordem social superior. Notamos por toda parte a existência de uma sociedade dividida (em classes). O antagonismo entre essas duas classes caminha, lado a lado, com o desenvolvimento dos recursos industriais nos países civilizados. Do ponto de vista socialista, os meios para transformar revolucionariamente a fase histórica presente já existem. Em numerosos países, organizações políticas tomaram impulso a partir dos sindicatos. Na América, é evidente, hoje, a necessidade de um partido operário independente. Os trabalhadores não podem mais confiar nos políticos. Os especuladores e as "claques" se apoderaram dos órgãos legislativos e a política tornou-se uma profissão. Não é somente o caso da América, mas aí o povo é mais resoluto do que na Europa; as coisas amadurecem mais rápido, não se faz rodeios e se vai direto aos fatos.
Pergunta - Como o senhor explica o rápido crescimento do partido socialista na Alemanha?
Marx - O atual partido socialista teve um nascimento tardio. Os socialistas alemães não tiveram de romper com os sistemas utópicos, que alcançaram certa importância na França e na Inglaterra. Os alemães, mais do que os outros povos, são inclinados à teoria e tiraram conclusões práticas das experiências anteriores. Não esqueça, acima de tudo, que na Alemanha, ao contrário dos outros países, o capitalismo moderno é coisa completamente nova. Coloca, na ordem do dia, questões já um tanto quanto esquecidas na França e na Inglaterra. As novas forças políticas, às quais os povos desses países se submeteram, encontraram em face delas, na Alemanha, uma classe operária já convicta das teorias socialistas. Assim, os trabalhadores puderam formar um partido político independente, quase simultaneamente à instalação da indústria moderna (em seu país). Eles têm seus próprios representantes no Parlamento. Como não existe nenhum partido do oposição à política governamental, este papel recais sobre o partido operário. Retraçar aqui a história do partido levaria demasiado longe, mas posso dizer o seguinte: se a burguesia alemã não fosse composta pelos maiores poltrões, ao contrário das burguesias americana e inglesa, ela de há muito teria-se oposto politicamente ao regime.
Pergunta - Quantos lassalianos existem nas fileiras da Internacional?
Marx - Enquanto partido, os lassalianos não existem. É claro, podem ser encontrados, entre nós, alguns adeptos, mas apenas um pequeno número. Anteriormente, Lassalle fazia uso dos nossos princípios gerais. Quando lançou seu movimento, depois do período de reação que se seguiu a 1848, acreditava que o melhor meio de reanimar o movimento operário consistia em pregar a cooperativa operária de produção. Ele queria, desse modo, estimular os trabalhadores à ação; era a seus olhos, um simples meio de atingir o objetivo real do movimento. Possuo cartas de Lassalle que vão nesse sentido.
Pergunta - Era, então, de certa forma, uma panacéia?
Marx - Exatamente. Ele procurou Bismarck para lhe expor suas intenções. E Bismarck encorajou as aspirações de Lassalle de todas as maneiras concebíveis.
Pergunta - O que Bismarck tinha em mente?
Marx - Ele queria jogar a classe operária contra a burguesia oriunda da Revolução de 1848.
Pergunta - Diz-se que o senhor é a cabeça e o guia do movimento socialista e que, da sua casa, o senhor puxa todos os cordéis das organizações, revoluções etc. É verdade?
Marx - Eu sei disso. É uma coisa absurda, mas que tem seus aspectos cômicos. Assim, dois meses antes do atentado de Hödel, Bismarck queixou-se, na Norddeustsche Zeitung, da aliança que eu teria estabelecido com o Superior dos jesuítas, Beckx; teria sido por culpa nossa que ele não pudera encetar o movimento socialista.
Pergunta - Mas é mesmo a vossa "Associação Internacional" de Londres que dirige o movimento?
Marx - A Internacional teve sua utilidade, mas seu tempo expirou e ela deixou de existir. Ela teve sua atividade, dirigiu o movimento. Mas o crescimento do movimento socialista, no curso dos últimos anos, a tornou supérflua. Em diversos países surgiram jornais, que mantêm relações recíprocas. Este é o único vínculo que os partidos de diversos países conservam entre si. A Internacional foi criada, antes de tudo, com o objetivo de reunir os trabalhadores e de lhes mostrar que valia a pena congregar suas diversas nacionalidades no sei de uma organização. Mas os interesses dos partidos operários não são idênticos nos diversos países. O espectro de uma chefe da Internacional, sediado em Londres, é uma pura e simples invenção. Entretanto, é exato que demos instruções às organizações operárias, na época em que a associação das Secções Internacionais estava solidamente estabelecida. Desse modo, fomos obrigados a excluir algumas secções de Nova Iorque, entre outras, aquela na qual figurava em primeiro plano a senhora Woodhull. Isto aconteceu em 1871. Havia numerosos políticos americanos que teriam, deliberadamente, feito do movimento um negócio pessoal. Não quero citar nomes: os socialistas americanos os conhecem muito bem.
Pergunta - Atribuiu-se ao senhor, como a seus partidários, Dr. Marx, toda a sorte de propósitos incendiários contra a religião. Com toda certeza, o senhor veria com prazer a eliminação radical deste sistema?
Marx - Não ignoramos que insensato tomar medidas violentas contra a religião. Segundo nossas concepções, a religião desaparecerá à medida que o socialismo se fortalecer. A evolução social vai, infalivelmente, favorecer esse desaparecimento, no qual cabe à educação um papel importante.
Pergunta - Recentemente, em uma conferência, o pastor Joseph Cook, de Boston, enfatizava que seria preciso dizer a Karl Marx que uma reforma do trabalho é realizável, sem revolução sangrenta, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, talvez também na França, mas que na Alemanha e na Rússia, assim como na Itália e na Áustria, será preciso derramar sangue para isso.
Marx - Já ouvi falar do senhor Cook. Ele não conhece grande coisa de socialismo. É desnecessário ser socialista para observar e prever que revoluções sangrentas se produzirão na Rússia, na Alemanha, na Áustria e talvez na Itália, se os italianos continuarem a progredir na direção em que se encontravam atualmente. Nesses países, acontecimentos comparáveis aos da Revolução Francesa poderiam efetivamente se produzir. Trata-se, neste caso, de uma evidência que salta aos olhos de qualquer um que esteja informado sobre a situação política. Mas essas revoluções serão feitas pela maioria. As revoluções não serão mais feitas por um partido, mas por toda a nação.
Pergunta - O referido religioso citou uma passagem de uma carta, que o senhor teria enviado em 1871 aos comuneiros parisienses, na qual se lê: "Hoje somos três milhões ou mais. Mas, em vinte anos, nós seremos cinquenta ou talvez cem milhões. Então, o mundo nos pertencerá uma vez que não apenas Paris, Lyon e Marselha, mas também Berlim, Munique, Dresder, Londres, Liverpool, Manchester, Bruxelas, São Petersburgo e Nova Iorque, em suma, o mundo inteiro, sublevar-se-á contra o odioso capital. Em face dessas novas insurreições, jamais vistas pela história até agora, o passado se dissipará como um pesadelo apavorante: o incêndio popular, lavrando em cem lugares ao mesmo tempo, aniquilará até mesmo a lembrança do passado". Doutor, admite ter escrito estas linhas?
Marx - Nem uma única palavra! Jamais escrevi semelhantes absurdos melodramáticos. Reflito maduramente aquilo que escrevo. Isso foi forjado, e apareceu no Fígaro com a minha assinatura. Naquele momento, fizeram circular centenas de cartas desse gênero. Escrevi aos Times de Londres para declará-las falsas. Mas se quisesse desmentir tudo o que se diz e se escreve a meu respeito, seria necessário empregar vinte secretárias.
Pergunta - Mas, mesmo assim, o senhor escreveu em favor da Comuna de Paris?
Marx - De certo que o fiz, em face do que fora dito a respeito nos editoriais. Todavia, alguns correspondentes parisienses desmentiram bastante, na imprensa inglesa, as alegações daqueles editoriais relativos a dissipações etc. A Comuna não executou mais do que sessenta pessoas, aproximadamente. O Marechal Mac Mahon e seu exército de carniceiros mararam mais de sessenta mil. Nenhum movimento desse gênero foi tão caluniado quanto a Comuna.
Pergunta - Os socialistas consideram o assassinato e o derramamento de sangue como necessários à realização de seus princípios?
Marx - Nenhum grande movimento nasceu sem derramamento de sangue. Os Estados Unidos da América não adquiriram sua independência senão pelo derramamento de sangue. Napoleão III conquistou a França através de atos sangrentos e foi vencido da mesma maneira. A Itália, Inglaterra, Alemanha e os outros países fornecem uma pletora de exemplos do mesmo gênero. Quanto ao homicídio político, não é uma novidade pelo que se sabe. Orsini, sem dúvida, tentou matar Napoleão III, mas os reis mataram mais homens do que ninguém. Os jesuítas mataram, e os puritanos de Cromwell mataram. Tudo isso se passou muito antes de que se tivesse ouvido falar dos socialistas. Hoje, no entanto, se lhes atribui a responsabilidade de todo atentado contra os reis e os homens de Estado. A morte do imperador da Alemanha seria, agora, particularmente deplorada pelos socialistas: ele é muito útil em seu posto, e Bismarck fez mais por nosso movimento do que qualquer outro homem de Estado, pois impeliu as coisas para o extremo.
Pergunta - O que pensa de Bismarck?
Marx - Antes de sua queda, tinha-se Napoleão III por gênio; depois ele foi chamado de louco. Acontecerá o mesmo com Bismarck. Sob pretexto de unificar a Alemanha, ele se pôs a edificar um regime despótico. Quem não vê onde ele quer chegar? Suas manobras mais recentes não são nada mais do que um golpe de estado transvestido, mas Bismarck fracassará. Os socialistas alemães e franceses protestaram contra a guerra de 1870, mostrando que se tratava de uma guerra puramente dinástica. Em seus manifestos, advertiram ao povo alemão que, se ele permitisse a transformação da pretensa guerra de defesa em guerra de conquista, seria punido pela instauração de um despotismo militar e pela opressão brutal das massas trabalhadoras. Naquela época, o partido social-democrata da Alemanha realizou reuniões e publicou manifestos nos quais se pronunciava em favor da paz honrosa com a França. O governo prussiano desencadeou imediatamente as perseguições contra o partido e muitos de seus dirigentes foram presos. Apesar disso, seus deputados, eles e somente eles, no Reichstag, ousaram protestar com a maior veemência contra a anexação pela força de uma província francesa. Bismarck, entretanto, impôs sua política pela violência e falou-se do gênio de Bismarck. A guerra estava terminada e como ele não podia fazer novas conquistas, mas devia fabricar ideias originais, faliu lamentavelmente. O povo perdeu a fé que tinha nele e sua popularidade está em declínio. Com a ajuda de uma pseudoconstituição e com vistas a realizar seus planos militares e de unificação, impôs pesados impostos ao povo, a um ponto que o povo não aceita mais, e ele tenta agora fazê-lo aceitar sem constituição. A fim de poder continuar a sangrá-lo a seu gosto, pôs-se a agitar o espectro do socialismo e fez todo o possível para provocar uma sublevação popular.
Pergunta - O senhor recebe, regularmente, relatórios de Berlim?
Marx - Sim, sou muito bem informado pelos meus amigos. Berlim está perfeitamente tranquila e Bismarck decepcionado. Ele interditou a permanência de quarenta e oito dirigentes, entre os quais os Deputados Hasselmann e Fritzsche, bem como a Rackow, Baumann e Auer da Freie Presse. Estes homens exortaram o povo berlinense a manter a calma e Bismarck o sabe. Também sabe muito bem que, em Berlim, 75.000 operários estão à beira de morrer de fome. Ele conta firmemente com que, afastados os dirigentes, produzir-se-ão os motins que darão o sinal para um banho de sangue. Então, poderia algemar todo o Império alemão e dar livre curso à sua cara política militarista; não haveria mais limites para a elevação dos impostos. Até o presente, nenhuma desordem aconteceu e Bismarck desolado, se apercebe de que é a si próprio que deve censurar, diante de todos os homens de estado.
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In: Marx Hoje. Nova Escrita Ensaio. Ano V. N. 11/12. São Paulo, 1983, pp. 49-66.
Downloadeie o arquivo scanneado, que contém as notas explicativas da entrevista.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Zero Hora, O MST e os 51 Dissidentes
Disponível em: http://www.revistaovies.com/colaboradores/2011/12/zero-hora-o-mst-e-os-51-dissidentes/
Há um embate histórico entre dois gaúchos de grande porte. Um dos maiores movimentos sociais da América Latina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra oficializou seu nascimento em Cascavel, no Paraná, mas foi parido em um acampamento em Ronda Alta, Rio Grande do Sul. O MST nasceu lutando por reforma agrária, e ganhou corpo ampliando suas pautas e sua integração com outros movimentos sociais, incluindo grupos que atuam no meio urbano. Do outro lado, constantemente recebendo patrocínio das associações e organizações ligadas ao agronegócio (e, consequentemente, defendendo os interesses destes grupos), está o jornal Zero Hora, principal veículo do Grupo RBS.
Por discordarem de algumas linhas políticas adotadas nos últimos anos pelo MST e por organizações ligadas a ele, 51 militantes se desligaram dessas organizações no último mês de novembro. A cobertura que o jornal Zero Hora realizou desse desligamento dá uma boa medida da forma como este veículo costuma tratar os movimentos sociais, e é um exemplo prático interessante para aplicação de alguns conceitos explicitados por Pierre Bourdieu em seu livro “O Poder Simbólico”.
Um conglomerado midiático a serviço das elites
Fundado em 1957, maior grupo de comunicação da região Sul do Brasil e um dos maiores do país, o Grupo RBS possui, segundo seu próprio site, 18 emissoras de TV aberta, duas emissoras de TV locais, 24 emissoras de rádio e oito jornais, além de “11 produtos na plataforma digital, duas empresas de eventos, Operação mobile marketing, Operação segmento rural, Operação segmento jovem, Operação e-business, uma editora, uma gravadora, uma gráfica, uma empresa de logística, uma empresa de educação executiva e a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho”. Segundo o site Donos da Mídia, “em termos de propriedade direta de veículos, o grupo gaúcho RBS é a terceira maior organização de mídia privada do Brasil. São 57 veículos entre rádios, emissoras de TV e jornais. Possui também negócios na área de TV por assinatura, internet, mercado editorial e indústria fonográfica”.
O mais importante veículo do Grupo RBS é também um dos maiores jornais do país, Zero Hora, com circulação diária média beirando os 200 mil exemplares, segundo o Instituto de Verificação de Circulação. Zero Hora nasceu em 1964, não por coincidência pouco depois do golpe que instituiu a Ditadura que durou até os anos 1980. Como escreveu o jornalista Marco Aurélio Weissheimer no blog RS Urgente, “como a maioria da grande mídia brasileira, a empresa gaúcha apoiou o golpe que derrubou João Goulart. O jornal Zero Hora ocupou o lugar da Última Hora, fechado pelos militares por apoiar Jango. Esse foi o batismo de nascimento de ZH: a violência contra o Estado Democrático de Direito. (…) A expansão da empresa se consolidou em 1970, com a criação da RBS. A partir das boas relações estabelecidas com os governos da ditadura militar e da ação articulada com a Rede Globo, a RBS foi conseguindo novas concessões e diversificando seus negócios”.
Todo esse poderio midiático, que, como escreveu Weissheimer, serviu aos interesses da Ditadura, serve hoje aos interesses das elites econômicas nacionais. Inúmeras são as análises aprofundadas, publicadas especialmente em blogs (Diário Gauche, RS Urgente, Zero Fora e Jornalismo B, por exemplo), que demonstram o alinhamento das reportagens publicadas no jornal Zero Hora em especial, e divulgadas no Grupo RBS em geral, às demandas do agronegócio, das empreiteiras e das montadoras de automóveis, sendo estes dois últimos setores, segundo o Ibope Monitor, os dois maiores anunciantes dos veículos vinculados à Associação Nacional de Jornais (ANJ).
Pierre Bourdieu, o Poder Simbólico e o mito da imparcialidade
Há poucos meses, escrevi em um artigo: “O bloqueio do silêncio é uma forma torturante de sufocar qualquer movimento social e qualquer setor oprimido. A informação é uma grande arma, e o domínio dessa arma por alguns poucos grupos empresariais é uma realidade. Com o monopólio das armas pelas elites, não há como lutar. A imprensa dominante é aliada do latifúndio, das grandes empreiteiras, das produtoras de automóveis, das produtoras de tabaco. Não há como acreditar que dará voz aos diferentes. A imprensa dominante tem lado, e não é o dos movimentos sociais”.
Pierre Bourdieu fala na disputa pela hegemonia da produção do poder simbólico (encabeçada, sem dúvida, pela mídia), como um espaço de luta de classes: “O campo de produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção” (BOURDIEU, 1989, p. 12). Ou seja, as elites midiáticas atuam servindo aos interesses das elites econômicas e políticas. “O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder (…)” (BOURDIEU, 1989, p. 15).
Bourdieu torna técnica essa forma de dominância, de hegemonia, e demonstra a importância desse poder simbólico na forma pela qual a sociedade se enxerga e se constrói: “O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” (BOURDIEU, 1989, p. 14).
Através da aparência de neutralidade e objetividade, a mídia dominante brasileira constrói sua legitimidade. Com raras exceções, não se afirma posicionada ao lado de quaisquer interesses ou grupos de interesse. Reveste suas reportagens de aparente neutralidade, quando, na verdade, editorializam boa parte dos textos, e os tornam impregnados de juízos de valor disfarçados de narração factual.
Na realidade, a imparcialidade não passa de um mito, alimentado pelos setores que têm interesse econômico em sua permanência e interesse político na alienação. Imagine-se um fotógrafo. Mesmo que não interfira diretamente no ambiente ou na situação que fotografa, ele opta por determinado enquadramento, determinada luz e determinado ângulo. Essa opção exclui as outras, assim como já na escolha por fotografar determinado evento ele deixa de fotografar outro. Pode haver aí, sim, uma ética, mas não imparcialidade. Não é possível fotografar tudo de todas as formas, e as opções que o fotógrafo fará serão determinantes na forma pela qual as pessoas que acessarem suas fotografias perceberão o evento fotografado. O mesmo acontece em um texto.
No caso específico do MST há um exemplo claro para demonstrar como a imparcialidade jornalística não passa de um mito. A opção por narrar as ações do movimento como “invasões” ou “ocupações” carrega uma grande carga ideológica, denota um posicionamento político em relação ao MST, considerando-se o negativismo da palavra “invasão”. Essa é geralmente a escolha da mídia dominante, especificamente do jornal Zero Hora, aqui abordado.
É essa fantasiada neutralidade que legitima o discurso das elites nacionais e internacionais, que se reproduz a partir desses setores da mídia brasileira. Diz Bourdieu: “(O poder simbólico) só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (…) O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1989, p. 14).
Mais do que narrar a realidade, a mídia (enquanto parte fundamental do exercício do poder simbólico) a constrói. É através dela que os indivíduos – e a sociedade, de modo geral – percebem o mundo à sua volta, vive o seu tempo e entende a constituição de certo zeitgeist (“espírito do tempo”), ao mesmo tempo em que o constitui. Além de uma série de outros elementos, é fundamentalmente através de instituições como a escola, a família e a comunidade próxima, mas também a mídia, que os indivíduos formam suas ideias a respeito dos acontecimentos sociais.
Bourdieu, chamando Durkheim, chama esta percepção e estas ideias de sentido imediato do mundo: “O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências’. (…) Os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’” (BOURDIEU, 1989, p. 9).
A mídia hegemônica, além de colocar-se como um poder em si mesma, é, então, portadora dos discursos das classes dominantes. Dessa forma, trabalha pela construção de certo consenso ideológico nas fatias oprimidas da sociedade. Trabalha pela alienação enquanto encobrimento da realidade de opressão e domínio de umas classes sobre outras: “(…) as frações dominantes, cujo poder assenta no capital econômico, têm em vista impor a legitimidade da sua dominação quer por meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores (…)” (BOURDIEU, 1989, p. 12).
O caso dos 51 dissidentes
Em meados do mês de novembro (2011), um grupo de 51 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), da Consulta Popular e da Via Campesina (as últimas três organizações ligadas à primeira) anunciaram, por meio da divulgação de uma carta aberta (anexo 1), sua saída das organizações a que pertenciam. As motivações básicas são o descontentamento com a aproximação do MST com os governos do PT e com a burocratização e acomodação das lutas.
A saída dos dissidentes motivou algumas matérias no jornal Zero Hora, assinadas por Carlos Wagner e Humberto Trezzi. A principal dessas reportagens foi publicada na edição do dia 27 de novembro, domingo, ocupando duas páginas do jornal (anexo 2). Trata-se de um festival de juízos de valor, palavras de ordem em tom editorializado, e até manipulações do conteúdo da carta divulgada pelos dissidentes.
O título, manchete de capa, dá o tom, e a linha de apoio complementa: “Racha do MST ameaça criar grupo radical – Cisão histórica no movimento abre terreno para a formação de célula extremista”. Radical e extremista são adjetivos que vão permear toda a reportagem, e colocar subjetivamente o posicionamento do jornal, tentando impor medo à população, criar logo no nascedouro uma postura negativa da sociedade em relação a qualquer atividade que possa vir a ser desenvolvida pelos lutadores sociais que acabam de deixar o MST.
A linha de apoio da matéria chama mais uma vez: “Zero Hora reconstitui a histórica reunião que sacramentou o racha no movimento dos sem-terra e criou uma nova organização que pode se tornar o embrião de uma célula voltada para ações extremas”. Mais uma vez o extremismo. E já a primeira afirmação que não é verdadeira: “criou uma nova organização”. A verdade, admitida no próprio corpo da reportagem, é que ainda não há rumo certo para os dissidentes, tampouco se sabe se irão atuar juntos.
A segunda afirmação que não se relaciona com a verdade vem mais ou menos pela metade do texto, no 5º parágrafo: “Basta ler a carta escrita por eles para ter essa certeza: lá está redigido que o MST abandonou a luta radical e passou a mobilizar bases apenas para manifestações dentro da lei, o que desagrada aos dissidentes”. Não é verdade. Não está redigido na carta que o MST abandonou a luta radical – embora essa crítica esteja implícita, há apenas uma vez a palavra “radical” na carta, e não é nesse contexto –, muito menos que as manifestações “dentro da lei” desagradam aos dissidentes. A carta não cita nenhuma vez as expressões “dentro da lei”, “legal” ou similares.
No texto principal da matéria, “radical” e seus derivados aparecem quatro vezes em 12 parágrafos. Há ainda uma vez “extremista”. Além disso, há um parágrafo inteiro dedicado a enumerar o que teria sido “destruído” quando o MLST, uma dissidência do MST surgida em 1994, ocupou (ou “invadiu”, como diz ZH) o Congresso Nacional. O texto diz que “Esse grupo ganhou projeção nacional em 2006, ao invadir o Congresso. Durante a manifestação, cem militantes do MLST destruíram tudo que encontraram pela frente, incluindo (…)”, e aí seguem-se oito linhas listando a “destruição”.
A seguir, mais um grupo é citado, uma espécie de “corrente” do MST, liderada por José Rainha. Sobre ele, Carlos Wagner e Humberto Trezzi escrevem: “se notabiliza por invasões sistemáticas de terras e algumas depredações, táticas que serão retomadas pelos rebeldes que lançaram o manifesto em Viamão. Basta ler a carta escrita por eles para se ter essa certeza”, e então vem a mentira citada e desmascarada aqui dois parágrafos atrás. São, então, dois grupos citados, cujas ações relatadas são descritas como violentas, e que os funcionários de Zero Hora tentam relacionar com os novos dissidentes.
Os dois parágrafos seguintes da matéria falam em uma “disputa entre organizações de esquerda” pelos dissidentes, mas não há fonte citada nem nominalmente nem omitindo identidade. Soa a especulação ou informação plantada, já que não há qualquer tipo de referência à origem da “informação”.
Há ainda uma entrevista com o agrônomo Zander Navarro, que legitima suas críticas ao MST por ter sido apoiador do movimento 30 anos atrás, mas que rompeu com as lutas pela reforma agrária defendendo a acomodação entre agricultura familiar e agronegócio. Procurando por seu nome em algum site de buscas é fácil encontrar artigos e entrevistas em que faz exatamente as mesmas declarações que fez a Zero Hora, ironizando, desmerecendo e debochando dos integrantes do MST. Nas cinco perguntas feitas pela reportagem, uma vez aparece “extremista”, uma vez aparece “radical” e, na última questão, é sugerido que os dissidentes possam vir a praticar sequestros (“Há espaço para que se transformem em algo, como o EPP paraguaio, que sequestra fazendeiros?”).
O entrevistado diz que uma postura “anti-intelectual” sempre marcou o MST, pois o movimento teria nascido de “setores católicos resistentes ao estudo”. Afirma ainda que “o manifesto reflete uma inacreditável leitura da realidade à luz da conjuntura vivida no Brasil. Ou seja, demonstra a miopia e o espantoso estreitamento dos debates internos do MST”. Depois fala na prevalência de “uma profunda ignorância política de militantes do MST”, e em “abissal desconhecimento de setores ligados aos temas rurais, incapazes de perceber que o mundo rural brasileiro cruzou um ‘divisor de águas’ nos anos 90, sendo atualmente uma máquina de produção de riquezas”. Para quem são essas riquezas não é uma questão colocada, assim como a simpatia de Zander Navarro às políticas de Fernando Henrique Cardoso na área da agricultura, expressas em outras entrevistas. Por fim, o especialista de Zero Hora chama o manifesto de “politicamente ridículo, uma manifestação de infantilidade”.
A referência à possibilidade de atuação dos dissidentes em sequestros, citada aqui há dois parágrafos e colocada na última pergunta da entrevista com Navarro, volta a aparecer na retranca (pequeno texto anexo à matéria principal) entitulada “Ex-militantes cogitam formar ‘Tele Protesto’”. Os repórteres citam como fontes quatro dos dissidentes, que não quiseram ser identificados, e diz que “cogitam agir como uma espécie de tropa de choque da esquerda – uma espécie de Tele Protesto: se chamados, vão atuar de forma decisiva em invasão de fazendas, ocupação de edifícios, bloqueio de estradas e impedimento de atividade de servidores”. E completa com um exemplo claro de “não-notícia” que tenta induzir ao medo: “Não é cogitada, até o momento, tomada de reféns”. Se não é cogitada, por que constar na matéria? Apenas para assustar, para plantar no imaginário do leitor a possibilidade, e é para reforçar essa imagem que está ali a expressão “até o momento”.
Durante toda a cobertura de domingo, sete vezes foi usada pelos repórteres e editores a palavra “radical” ou suas derivadas, quatro vezes “extremismo” ou assemelhados, e duas vezes foi sugerida ou afirmada a possibilidade de que os dissidentes venham a praticar sequestros. Tudo isso além de duas passagens do texto que não se alinham à realidade objetiva.
Conclusão
A análise acima demonstra na prática o exercício do que foi teorizado por Pierre Bourdieu e apresentado no item anterior. Zero Hora, através de seu poder simbólico, legitimado socialmente pela aparente neutralidade e imparcialidade, criminaliza os 51 dissidentes do MST como a ampliação da criminalização do movimento levada a cabo há anos, em todas as coberturas a respeito do movimento. O uso excessivo de palavras como “radical” e “extremista” demonstram o conceito que o jornal tenta transmitir a respeito daqueles agentes.
Desconstruir esse tipo de discurso, que busca esvaziar a política e criminalizar os movimentos sociais, é uma necessidade para o aprofundamento (ou a realização) da democracia. O exemplo apresentado aqui é apenas isso, um exemplo, e reflete a prática comum na mídia hegemônica, de atacar movimentos sociais, sindicatos, mobilizações grevistas e até mesmo partidos políticos, buscando realizar o caminho traçado pelo ideário liberal do esvaziamento da política como forma de enfraquecer os controles sobre os abusos opressivos das elites.
Referências bibliográficas e indicações
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 15ª edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2011.
http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil
http://diariogauche.blogspot.com
http://donosdamidia.com.br/grupo/21409
http://www.gruporbs.com.br/quem_somos/index.php?pagina=grupoRBS
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Estou Relendo: "O Capital", de Marx
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. Vol. 1. Ed. 22. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2004, p. 164-165.