Alguns apontamentos para uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura.
1. Alguns pontos preliminares de referência
§ 12 É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são 'filósofos', definindo os limites e as características desta 'filosofia espontânea', peculiar a 'todo o mundo', isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por 'folclore'.
Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, insconscientemente - já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na 'linguagem', está contida uma determinada concepção de mundo -, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível 'pensar' sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, 'participar' de uma concepção de mundo 'imposta' mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na 'atividade intelectual' do vigário ou do velho patriarca, cuja 'sabedoria' dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e nao mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?
Nota 1: Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual o tipo histórico de conformismo, de homens-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um 'conhece-te a ti mesmo' como produto de um processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem benefício do inventário. Deve-se fazer. inicialmente, este inventário.
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CADERNO 7
§ 12 O homem-indivíduo e o homem-massa. O provérbio latino Senatores boni viri, senatus mala bestia virou um lugar-comum. O que significa este provérbio e que significado adquiriu? Que uma multidão de pessoas dominadas pelos interesses imediatos ou tomadas pela paixão suscitada pelas impressões momentâneas, transmitidas acriticamente de boca em boca unifica-se na decisão
coletiva pior, que corresponde aos mais baixos instintos bestiais. A observação é justa e realista quando
referida às multidões ocasionais, reunidas como “uma multidão durante um
aguaceiro sob um abrigo”, compostas de homens que não estão ligados por
vínculos de responsabilidade em relação a outros homens ou grupos de homens, ou
em relação a uma realidade econômica concreta, cuja ruína se desdobra no
desastre dos indivíduos. Por isso, pode-se dizer que nestas multidões o
individualismo não só não é superado, mas é exasperado pela certeza da
impunidade e da irresponsabilidade.
Mas também é observação
comum que uma assembléia “bem organizada” de
elementos desordeiros e indisciplinados unifica-se em torno de decisões
coletivas superiores à média individual: a quantidade transforma-se em qualidade. Se não fosse assim, não
seria possível o exército; por exemplo, não seriam possíveis os sacrifícios
inauditos que grupos humanos bem disciplinados sabem fazer em determinadas
ocasiões, quando seu senso de responsabilidade social é despertado
vigorosamente pelo sentido imediato do perigo comum e o futuro se delineia mais
importante que o presente. Pode-se dar o exemplo de um comício em praça pública,
que é diferente de um comício em recinto fechado e é diferente de uma assembléia
sindical de categoria profissional, e assim por diante. Uma reunião de oficiais de Estado-Maior será
bastante diferente de uma assembléia de soldados de um pelotão, etc.
Tendência ao conformismo
no mundo contemporâneo, mais ampla e profunda do que no passado: a
estandardização do modo de pensar e de atuar assume dimensões nacionais ou até
mesmo continentais. A base econômica do homem-coletivo: grandes fábricas,
taylorização, racionalização, etc. Mas
terá existido ou não no passado o homem-coletivo? Existia sob a forma da direção carismática,
para citar Michels: isto é, obtinha-se uma vontade coletiva sob o impulso e a
sugestão imediata de um “herói”, de um homem representativo; mas esta vontade
coletiva era devida a fatores extrínsecos, compondo-se e decompondo-se
continuamente. O homem coletivo de hoje, ao contrário, forma-se essencialmente
de baixo para cima, à base da posição ocupada pela coletividade no mundo da
produção: também hoje o homem representativo tem uma função na formação do
homem-coletivo, mas muito inferior à do passado, tanto que ele pode desaparecer
sem que o cimento coletivo se desfaça e a construção desabe.
Diz-se que “os
cientistas ocidentais consideram que a psique da massa não passa do
ressurgimento dos antigos instintos da horda primitiva e, portanto, de um
regresso a estágios culturais superados há longo tempo”; isto deve ser referido
à chamada “psicologia das multidões”, isto é, das multidões casuais, e a
afirmação é pseudocientífica, está ligada à sociologia positivista.
Deve-se notar, a respeito do “conformismo”
social, que a questão não é nova e que o brado de alarme lançado por alguns
intelectuais é apenas cômico. O conformismo sempre existiu: trata-se hoje de
luta entre “dois conformismos”, isto é, de uma luta pela hegemonia, de uma
crise da sociedade civil. Os velhos dirigentes intelectuais e morais da
sociedade sentem faltar terreno sob seus pés, percebem que suas “pregações”
tornaram-se de fato “pregações”, isto é, coisas estranhas à realidade, pura
forma sem conteúdo, mera aparência sem espírito; daí seu desespero e suas
tendências reacionárias e conservadoras: como a forma particular de
civilização, de cultura, de moralidade que eles representaram se decompõe, eles
sentenciam a morte de toda civilização, de toda cultura, de toda moralidade,
exigem medidas repressivas do Estado ou se tornam um grupo de resistência
separado do processo histórico real, aumentando dessa forma a duração da crise,
porque o ocaso de um modo de viver e de pensar não pode ocorrer sem crise. Os
representantes da nova ordem em gestação, por outro lado, por ódio “racionalista”
à velha, difundem utopias e planos cerebrinos. Qual o ponto de referência para
o novo mundo em gestação? O mundo da
produção, o trabalho. O máximo utilitarismo deve estar na base de qualquer
análise das instituições morais e intelectuais a serem criadas e dos princípios
a serem difundidos: a vida coletiva e individual deve ser organizada tendo em
vista o máximo rendimento do aparelho produtivo. O desenvolvimento das forças
econômicas em novas bases e a instauração progressiva da nova estrutura sanarão
as contradições que não podem deixar de existir; e, tendo criado um novo
“conformismo” a partir de baixo, permitirão novas possibilidades de
autodisciplina, isto é, de liberdade até individual."