Por Achilles Delari Junior*
Farei aqui uma crítica à tirania apoiada pelos signos já saturados da “verdade relativa”, da “inexistência” ou “morte” da verdade. Primeiro em meios acadêmicos, mas hoje também no senso comum, passou a ganhar força tal “ideologia” – tal “visão parcial imposta como explicação geral”. Ideologia da queda absoluta de qualquer critério objetivo para o entendimento entre as pessoas, na qual tudo se dissipa em apreensões subjetivas do certo ou errado, não cabendo a ninguém, portanto, prestar contas de seus atos – já que “para você é assim, pois esta é sua verdade; para mim não é, pois minha verdade é outra”. Procurarei apresentar ao leitor argumentos e exemplos de como tal modo de pensar e agir é prejudicial para as práticas democráticas e para o pensamento realmente crítico, favorecendo o autoritarismo e o pensamento acrítico, supersticioso. Peço a quem discordar que envie réplica, pois não será verdadeiro o que só eu ou você isoladamente pensamos, mas o que emerge do confronto tenso e franco entre pontos de vista distintos e deles com a própria realidade, que cobra sentido de nossas palavras.
Por que “a realidade cobra sentido”? Porque não podemos pensar tudo sobre qualquer coisa, sem prestar contas à realidade. Um exemplo na construção civil. Contou-me meu pai, mestre de obras aposentado, que certa vez trabalhou com ele um engenheiro recém formado. Deviam decidir sobre a proporção de areia e água para a mistura de uma massa de concreto. O engenheiro decorou bem a fórmula na faculdade e tinha a “verdade” de como deveria ser. Mas a areia estava molhada, e o mestre alertou que assim era preciso diminuir a quantidade de água. O engenheiro insistiu, pois aprendeu a proporção na faculdade e essa era a verdade. Foi feito como decretou. Resultado óbvio: a massa ficou mole demais. O mestre apenas o olhou com calma e disse: “Está aí o que você queria”! Óbvio que a areia molhada já tinha parte da água necessária na proporção para a massa. O engenheiro nunca se retratou pelo erro. Ele tinha “a verdade dele”? Não, ele estava errado. – e do erro fez seu dogma: “assim aprendi na faculdade”. Tal “verdade relativa” nunca faria a massa ficar consistente. A verdade não depende só de nosso pensamento, imaginação ou vontade. Por isso: “a realidade cobra sentido”. O real não se dobra à teimosia do engenheiro. Algo jamais será verdadeiro apenas “porque o professor disse”. Seria necessário que o engenheiro tivesse inteligência para aplicar o que devia ter compreendido, não só decorado. Pois as proporções seriam as mesmas, apenas parte da água já estava na mistura. Marx já disse que o critério da verdade é a prática – a capacidade de transformarmos a realidade – e não a discussão escolástica, ou a “autoridade” de quem diz tê-la.
Seria simples: é verdadeiro o que se pode por em prática; o que melhor explica os fatos e permite transformá-los. Mas não é tão simples, porque também se associou historicamente o “verdadeiro” ao que submete o outro à minha concepção, mesmo que errônea, é o que se chama “dogma”. O dogma não é verdade, mas regra de obediência: “faça assim porque é como aprendi na faculdade” – disse – mesmo sem entender o “aprendido”. Isso nada tem a ver com conhecimento verdadeiro. Entretanto, precisando negar o “dogmatismo” (atitude filosófica que postula o caráter imutável e absoluto de uma suposta “verdade”), o pensamento moderno criou-lhe um oposto também arbitrário: o “relativismo” (atitude filosófica que postula o caráter inexistente ou puramente subjetivo da verdade). Infelizmente, nota-se que: para o dogmático, a “verdade absoluta” é sempre a dele, nunca a de quem pensa diferente; e para o relativista, geralmente a “verdade relativa” é a de quem pensa diferente dele e não a própria. Se ele não aceita nosso pensamento costuma dizer “isso é relativo”, poucas vezes faz o mesmo com o que pensa e defende piamente, tal qual o dogmático. Há uma atitude ética comum: a esquiva de sermos corrigidos pelo outro, de entrarmos em contradição com nossos preceitos. O dogmático não pode ser corrigido, pois tudo que diz é verdade, o relativista não pode ser corrigido, pois, não havendo verdade, tudo que pensar será válido. Para Bakhtin o dogmatismo e o relativismo impossibilitam o diálogo – aquele porque o proíbe, este porque não necessita dele. Para o dialogismo, a verdade reside não em mim nem no outro, mas no diálogo – cobrando esforço pessoal, compromisso ético e atitude democrática.
Mas por que o relativismo não seria democrático? Por um motivo principal: se eu tenho minha verdade e você a sua, se não há verdade comum, nem conceito mais fiel à realidade que o outro, qual das duas prevalecerá? Simples, prevalecerá a de quem tem mais força. Não a de quem está correto, já que “não há ninguém mais correto”. Contou-me uma amiga que seu pai é comerciante e não pode mais cobrar certos clientes inadimplentes, pois já foi ameaçado de morte por fazê-lo. Muito bem, o comerciante tem “sua” verdade: deseja receber pelo produto vendido. E o devedor tem sua “verdade”: não quer pagar. Mas como se decide isso então? Se as verdades são opostas? O vendedor pode recorrer à cobrança, sentindo-se desrespeitado. O devedor pode recorrer à negação de pagar, ofendido por ser cobrado. Tais recursos continuam sendo “verdades” opostas. Qual vencerá? Nesse caso vence a da intimidação, da ameaça: “se me cobrar vou te matar”. Para não se aborrecer mais, o comerciante deixa prevalecer a “verdade” do outro. Sim, o leitor pode dizer que o contrário também ocorre na sociedade capitalista: alguém faz um crediário para comprar um simples fogão, perde o emprego e fica devedor, e por isso o outro ameaça fazer-lhe mal caso não pague – seja o mal dentro da lei ou não. Isto só confirma meu argumento: sendo apenas “verdades diferentes”, como decidir? Sem critérios objetivos para entendimento, a chance de prevalecer a força é maior. Verdade de “quem pode mais”, de quem manda fazer ou proíbe ser feito. É uma armadilha do relativista: nega o autoritarismo do dogmático, mas abre espaço para o dogma ser só “mais uma verdade entre as outras”. Em termos éticos é catastrófico, pois a ética do judeu e a do nazista ficam no mesmo patamar: “verdades” de cada grupo. Daí decorre a pertinência da crítica de Karl-Otto Apel ao relativismo de Paul-Michel Foucault, mostrando que a ética transcendental não impede as éticas particulares, mas as garante, pois em que fórum se decidirá quando uma diferença exclui a outra?
Só o diálogo pode transcender verdades exclusivamente individuais, relativas frente às outras e absolutas para cada um. Diálogo entre os homens (critério de Bakhtin) e deles com a realidade pela mediação da prática (critério de Marx). Mas dialogar não é só concordar. Lucília Reboredo, psicóloga social, disse em Piracicaba: “para que haja diálogo é preciso haver diferença”. Se todos pensam igual só há repetição do comum – nem sempre verdadeiro. O mais verdadeiro não é o que “todos dizem”, é o mais fiel às contradições da realidade, mesmo que não gostemos delas. Mas compreendê-las, no conjunto, escapa à ação individual, precisamos confrontar visões em busca de entendimento coletivo. Se todas as visões fossem igualmente válidas tal busca seria desnecessária. Admitir que, em oposição, uma delas ou ambas podem errar é desconfortável. Melhor pensar: “cada um tem sua verdade”. Como ninguém gosta de admitir seus erros, digamos que “todos estão certos” – uma forma de comodismo. Há nisso razões sociais para o sucesso da moda relativista na ciência e na ética.
Temos hoje muitas diferenças, mas paradoxalmente aumenta a intolerância. Existem muitas culturas, mas cada qual vive “sua própria verdade”. Mais que diferenças, temos desigualdades. Nossa preguiça mental e falta de disposição afetiva para buscar saídas dialógicas de entendimento são mascaradas pela falácia da apologia das “verdades relativas”, que já mostra sua face tirânica: “você pode ser diferente, desde que longe de mim”. Mas a verdade não é relativa nem absoluta, é histórica. E a história da humanidade tem sido história de lutas. É lutando, confrontando, transformando o mundo e nossas relações sociais que aprendemos verdades necessárias a esta mesma transformação. Desistir disso é desistir de sermos humanos (seres sociais), para nos alienarmos num mundo subjetivo monológico, no qual só falo sobre mim e para mim, e o outro se torna um estranho ameaçador, a ser afastado, ignorado, temido ou subjugado, como pensam alguns psicanalistas. Ao nos afastarmos assim dos outros, também não nos encontraremos. Talvez nisso esteja a maior tirania em se obliterar qualquer busca de verdades partilhadas: abdicarmos da verdade sobre nós mesmos.
* * * * ** Psicólogo pela UFPR desde 1993. Mestre em Educação pela Unicamp, desde 2000, na área “Educação, conhecimento, linguagem e arte”. E-mail: delari@uol.com.br