quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A Tirania da Verdade Relativa

Por Achilles Delari Junior*

Farei aqui uma crítica à tirania apoiada pelos signos já saturados da “verdade relativa”, da “inexistência” ou “morte” da verdade. Primeiro em meios acadêmicos, mas hoje também no senso comum, passou a ganhar força tal “ideologia” – tal “visão parcial imposta como explicação geral”.  Ideologia da queda absoluta de qualquer critério objetivo para o entendimento entre as pessoas, na qual tudo se dissipa em apreensões subjetivas do certo ou errado, não cabendo a ninguém, portanto, prestar contas de seus atos – já que “para você é assim, pois esta é sua verdade; para mim não é, pois minha verdade é outra”. Procurarei apresentar ao leitor argumentos e exemplos de como tal modo de pensar e agir é prejudicial para as práticas democráticas e para o pensamento realmente crítico, favorecendo o autoritarismo e o pensamento acrítico, supersticioso. Peço a quem discordar que envie réplica, pois não será verdadeiro o que só eu ou você isoladamente pensamos, mas o que emerge do confronto tenso e franco entre pontos de vista distintos e deles com a própria realidade, que cobra sentido de nossas palavras.

Por que “a realidade cobra sentido”? Porque não podemos pensar tudo sobre qualquer coisa, sem prestar contas à realidade. Um exemplo na construção civil. Contou-me meu pai, mestre de obras aposentado, que certa vez trabalhou com ele um engenheiro recém formado. Deviam decidir sobre a proporção de areia e água para a mistura de uma massa de concreto. O engenheiro decorou bem a fórmula na faculdade e tinha a “verdade” de como deveria ser. Mas a areia estava molhada, e o mestre alertou que assim era preciso diminuir a quantidade de água. O engenheiro insistiu, pois aprendeu a proporção na faculdade e essa era a verdade. Foi feito como decretou. Resultado óbvio: a massa ficou mole demais. O mestre apenas o olhou com calma e disse: “Está aí o que você queria”! Óbvio que a areia molhada já tinha parte da água necessária na proporção para a massa. O engenheiro nunca se retratou pelo erro. Ele tinha “a verdade dele”? Não, ele estava errado.  – e do erro fez seu dogma: “assim aprendi na faculdade”. Tal “verdade relativa” nunca faria a massa ficar consistente. A verdade não depende só de nosso pensamento, imaginação ou vontade. Por isso: “a realidade cobra sentido”. O real não se dobra à teimosia do engenheiro. Algo jamais será verdadeiro apenas “porque o professor disse”. Seria necessário que o engenheiro tivesse inteligência para aplicar o que devia ter compreendido, não só decorado. Pois as proporções seriam as mesmas, apenas parte da água já estava na mistura. Marx já disse que o critério da verdade é a prática – a capacidade de transformarmos a realidade – e não a discussão escolástica, ou a “autoridade” de quem diz tê-la. 

Seria simples: é verdadeiro o que se pode por em prática; o que melhor explica os fatos e permite transformá-los. Mas não é tão simples, porque também se associou historicamente o “verdadeiro” ao que submete o outro à minha concepção, mesmo que errônea, é o que se chama “dogma”. O dogma não é verdade, mas regra de obediência: “faça assim porque é como aprendi na faculdade” – disse – mesmo sem entender o “aprendido”. Isso nada tem a ver com conhecimento verdadeiro. Entretanto, precisando negar o “dogmatismo” (atitude filosófica que postula o caráter imutável e absoluto de uma suposta “verdade”), o pensamento moderno criou-lhe um oposto também arbitrário: o “relativismo” (atitude filosófica que postula o caráter inexistente ou puramente subjetivo da verdade). Infelizmente, nota-se que: para o dogmático, a “verdade absoluta” é sempre a dele, nunca a de quem pensa diferente; e para o relativista, geralmente a “verdade relativa” é a de quem pensa diferente dele e não a própria. Se ele não aceita nosso pensamento costuma dizer “isso é relativo”, poucas vezes faz o mesmo com o que pensa e defende piamente, tal qual o dogmático. Há uma atitude ética comum: a esquiva de sermos corrigidos pelo outro, de entrarmos em contradição com nossos preceitos. O dogmático não pode ser corrigido, pois tudo que diz é verdade, o relativista não pode ser corrigido, pois, não havendo verdade, tudo que pensar será válido. Para Bakhtin o dogmatismo e o relativismo impossibilitam o diálogo – aquele porque o proíbe, este porque não necessita dele. Para o dialogismo, a verdade reside não em mim nem no outro, mas no diálogo – cobrando esforço pessoal, compromisso ético e atitude democrática. 

Mas por que o relativismo não seria democrático? Por um motivo principal: se eu tenho minha verdade e você a sua, se não há verdade comum, nem conceito mais fiel à realidade que o outro, qual das duas prevalecerá? Simples, prevalecerá a de quem tem mais força. Não a de quem está correto, já que “não há ninguém mais correto”. Contou-me uma amiga que seu pai é comerciante e não pode mais cobrar certos clientes inadimplentes, pois já foi ameaçado de morte por fazê-lo. Muito bem, o comerciante tem “sua” verdade: deseja receber pelo produto vendido. E o devedor tem sua “verdade”: não quer pagar. Mas como se decide isso então? Se as verdades são opostas? O vendedor pode recorrer à cobrança, sentindo-se desrespeitado. O devedor pode recorrer à negação de pagar, ofendido por ser cobrado. Tais recursos continuam sendo “verdades” opostas. Qual vencerá? Nesse caso vence a da intimidação, da ameaça: “se me cobrar vou te matar”. Para não se aborrecer mais, o comerciante deixa prevalecer a “verdade” do outro. Sim, o leitor pode dizer que o contrário também ocorre na sociedade capitalista: alguém faz um crediário para comprar um simples fogão, perde o emprego e fica devedor, e por isso o outro ameaça fazer-lhe mal caso não pague – seja o mal dentro da lei ou não. Isto só confirma meu argumento: sendo apenas “verdades diferentes”, como decidir? Sem critérios objetivos para entendimento, a chance de prevalecer a força é maior. Verdade de “quem pode mais”, de quem manda fazer ou proíbe ser feito. É uma armadilha do relativista: nega o autoritarismo do dogmático, mas abre espaço para o dogma ser só “mais uma verdade entre as outras”. Em termos éticos é catastrófico, pois a ética do judeu e a do nazista ficam no mesmo patamar: “verdades” de cada grupo. Daí decorre a pertinência da crítica de Karl-Otto Apel ao relativismo de Paul-Michel Foucault, mostrando que a ética transcendental não impede as éticas particulares, mas as garante, pois em que fórum se decidirá quando uma diferença exclui a outra?

Só o diálogo pode transcender verdades exclusivamente individuais, relativas frente às outras e absolutas para cada um. Diálogo entre os homens (critério de Bakhtin) e deles com a realidade pela mediação da prática (critério de Marx). Mas dialogar não é só concordar. Lucília Reboredo, psicóloga social, disse em Piracicaba: “para que haja diálogo é preciso haver diferença”. Se todos pensam igual só há repetição do comum – nem sempre verdadeiro. O mais verdadeiro não é o que “todos dizem”, é o mais fiel às contradições da realidade, mesmo que não gostemos delas. Mas compreendê-las, no conjunto, escapa à ação individual, precisamos confrontar visões em busca de entendimento coletivo. Se todas as visões fossem igualmente válidas tal busca seria desnecessária. Admitir que, em oposição, uma delas ou ambas podem errar é desconfortável. Melhor pensar: “cada um tem sua verdade”. Como ninguém gosta de admitir seus erros, digamos que “todos estão certos” – uma forma de comodismo. Há nisso razões sociais para o sucesso da moda relativista na ciência e na ética. 

Temos hoje muitas diferenças, mas paradoxalmente aumenta a intolerância. Existem muitas culturas, mas cada qual vive “sua própria verdade”. Mais que diferenças, temos desigualdades. Nossa preguiça mental e falta de disposição afetiva para buscar saídas dialógicas de entendimento são mascaradas pela falácia da apologia das “verdades relativas”, que já mostra sua face tirânica: “você pode ser diferente, desde que longe de mim”. Mas a verdade não é relativa nem absoluta, é histórica. E a história da humanidade tem sido história de lutas. É lutando, confrontando, transformando o mundo e nossas relações sociais que aprendemos verdades necessárias a esta mesma transformação. Desistir disso é desistir de sermos humanos (seres sociais), para nos alienarmos num mundo subjetivo monológico, no qual só falo sobre mim e para mim, e o outro se torna um estranho ameaçador, a ser afastado, ignorado, temido ou subjugado, como pensam alguns psicanalistas. Ao nos afastarmos assim dos outros, também não nos encontraremos. Talvez nisso esteja a maior tirania em se obliterar qualquer busca de verdades partilhadas: abdicarmos da verdade sobre nós mesmos.

* * * * ** Psicólogo pela UFPR desde 1993. Mestre em Educação pela Unicamp, desde 2000, na área “Educação, conhecimento, linguagem e arte”. E-mail: delari@uol.com.br


quarta-feira, 29 de maio de 2013

"O Povo", de Luis Fernando Veríssimo

Não posso deixar de concordar com tudo o que dizem do povo. É uma posição impopular, eu sei, mas o que fazer? É a hora da verdade. O povo que me perdoe, mas ele merece tudo o que se tem dito dele. E muito mais.

As opiniões recentemente emitidas sobre o povo até foram tolerantes. Disseram, por exemplo, que o povo se comporta mal em grenais. Disseram que o povo é corrupto. Por um natural escrúpulo, não quiseram ir mais longe. Pois eu não tenho escrúpulo.

 
O povo se comporta mal em toda a parte, não apenas no futebol. O povo tem péssimas maneiras. O povo se veste mal. Não raro, cheira mal também. O povo faz xixi e cocô em escala industrial. Se não houvesse o povo, não teríamos o problema ecológico. O povo não sabe comer. O povo tem um gosto deplorável. O povo é insensível. O povo é vulgar.

A chamada explosão demográfica é culpa exclusivamente do povo. O povo se reproduz numa proporção verdadeiramente suicida. O povo é promíscuo e sem-vergonha. A super-população nos grandes centros se deve ao povo. As lamentáveis favelas que tanto prejudicam nossa paisagem urbana foram inventadas pelo povo, que as mantém contra os preconceitos da higiene e da estética.

Responda, sem meias palavras: haveria os problemas de trânsito se não fosse pelo povo? O povo é um estorvo.

É notória a incapacidade política do povo. O povo não sabe votar. Quando vota, invariavelmente vota em candidatos populares que, justamente por agradarem ao povo, não podem ser coisa boa.

O povo é pouco saudável. Há, sabidamente, 95 por cento mais cáries dentárias entre o povo. O índice de morte por malnutrição entre o povo é assustador. O povo não se cuida. Estão sempre sendo atropelados. Isto quando não se matam entre si. O banditismo campeia entre o povo. O povo é ladrão. O povo é viciado. O povo é doido. O povo é imprevisível. O povo é um perigo.

O povo não tem a mínima cultura. Muitos nem sabem ler ou escrever. O povo não viaja, não se interessa por boa música ou literatura, não vai a museus. O povo não gosta de trabalho criativo, prefere empregos ignóbeis e aviltantes. Isto quando trabalha, pois há os que preferem o ócio contemplativo, embaixo das pontes. Se não fosse o povo nossa economia funcionaria como uma máquina. Todo mundo seria mais feliz sem o povo. O povo é deprimente. O povo deveria ser eliminado.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Reflexões Grundrissianas


Como forma universal da riqueza, o capital se diferencia de si mesmo apenas do ponto de vista quantitativo, ou seja, do ponto de vista de o sujeito ter mais ou menos capital – quando se é capitalista – ou mais ou menos salário – quando se é trabalhador assalariado. O aspecto qualitativo da riqueza social – o conjunto de valores de uso – importa, na esfera econômica, apenas como veículo de valor. É por isso que, sob o modo de produção capitalista, a forma social da riqueza é sempre impelida, por sua própria natureza, para além de seus limites imediatos: o horizonte da ampliação do valor tende virtualmente ao infinito. Somente por conta de sua natureza abstrata é que a forma social da riqueza capitalista – o valor – subordina progressivamente todas as atividades humanas a seus domínios. Marx lembra de acontecimentos do Império Romano, afirmando que a riqueza desfrutável “aparece como dissipação ilimitada, dissipação que procura igualmente elevar a fruição à imaginária ilimitabilidade devorando salada de pérolas” (Grundrisse, p. 210). Sob as condições de produção capitalistas, o valor atinge a sua forma mais desenvolvida. Assim, ao subordinar os produtos do trabalho que satisfazem necessidades que vão do “estômago à fantasia” à lógica auto-expansiva do valor, o caráter mercantil das coisas (especialmente, da força de trabalho) e a sua dinâmica acabam por impor determinações a todos os âmbitos, digamos, “extra-econômicos” da vida social. 

O significado social da “fruição imaginária ilimitada” a que Marx alude se referindo ao Império Romano é extremamente atual aos nossos tempos. Este significado, fundado na impressão de virtual inesgotabilidade da riqueza, acaba sendo internalizado pelos sujeitos, passando a compor os "instrumentos psicológicos" (Vigotski) que serão mobilizados em nossas consciências no planejamento de nossas atividades diárias. As necessidades a serem satisfeitas pelos sujeitos passam a ser elaboradas em termos de “fruição imaginária inesgotável”, o que significa, por exemplo, que a compra, a posse e o uso de determinada mercadoria satisfaz apenas por um instante fugaz, uma vez que a subjetividade, mal se encontrando com o objeto da necessidade anterior, já está mobilizada para o próximo objeto de desejo. Em termos individuais, a “dissipação ilimitada” é o modo de manifestação de uma subjetividade ideologicamente moldada para lubrificar as engrenagens invisíveis dos mecanismos de auto-valorização do valor, seja mediante a intensificação do trabalho ("trabalhando mais, eu ganho mais, eu compro mais"), seja na qualidade de consumidores compulsivos em busca de uma vida hedonista, que, contudo é realmente impossível.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

"BOBOS I", de Luís Fernando Veríssimo




O bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho – o Rei não entendera uma piada e mandara executá-lo – e o posto estava vago. O Procurador Real foi encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se com seus assessores para fazer um levantamento do mercado de bobos.

- Quem é que está disponível?

- Bem... Tem o Gros.

- Ele não estava com o rei da Saxônia?

- Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência e ele estava se repetindo.

- Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?

- Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino mais divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.

- E o velho Plim?

- Ultrapassado. Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém mais aguenta.

- Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.

- Quem?

- Serbo, o Croata.

- Onde é que ele já trabalhou?

- Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente. Não aprovou porque o rei dormiu.

- Não sei...

- Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.

- Mandem buscá-lo.

Serbo, o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária. Foi chamado com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao Procurador Real, com seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e entusiasmado.

- O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.

- Tudo. Só não engulo espada.

- Imitações?

- Faço uma galinha imitando um homem.

- Isso é diferente...

- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. Com bom gosto, é claro.

- Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se agradasse o Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida e um canto só seu no canil. Antes de começar, quis saber:

- Há algum assunto proibido?

- Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.

- Posso fazer piada sobre tudo?

- Pode.

- A cara do Rei? O cavalo do Rei?

- Tudo.

- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?

- Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na cara. O rei só não gosta de sutileza.

- Como, sutileza?

- Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.

Serbo, o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou.

- Seria uma pena. Somos muito ligados...

- Outra coisa – disse o Procurador Real.

- O que?

- Não fale mal de arqueiros.

- Arqueiros?

- O Rei pertence à Excelsa Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite piada sobre arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora vá se preparar para a sua primeira apresentação.

O bobo saiu enumerando nos dedos, para não esquecer, as três coisas proibidas. Papada, sutileza, arqueiros. Papada, sutileza, arqueiros...

No começo da apresentação de estreia de Serbo, o Croata, houve um momento difícil. Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: “Se o erro de um bobo é bobeada, o erro de um Papa é...” A Rainha ficou tesa no trono e o Rei quase levantou. Mas o bobo completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados. O resto da apresentação foi um sucesso. Nunca o Rei foi tão insultado.

O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um. Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei dava gargalhadas. Todos davam gargalhadas.

- O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.

- Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes de dizerem qualquer coisa.

Mais risadas.

- O povo quer ver sua caveira, majestade.

- O que?

- Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá muito.

- Ah...

- Majestade – continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau – responda se puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?

O Rei ficou sério de repente. Chamou o guarda e ordenou:

- Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.

Para o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra, estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:

- Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?

- Sabia.

- Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.

O Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:

- Eu disse que não era para ser sutil...

- Mas o que foi que eu fiz?

- Criticou os arqueiros.

- Como? Eu ia falar em bacalhau!

- Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.

O bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só quando o Procurador Real já estava saindo pela porta da masmorra é que ele se lembrou de perguntar:

- E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?

Mas era tarde. A porta se fechou.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

"O Cão Sem Plumas", de João Cabral de Melo Neto



I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.


O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.


Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.


Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.


Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.


Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.


Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.


E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.


Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.


Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.


Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.


Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.


(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).


Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?


Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.


Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.


Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.


Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).


O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.


Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.


E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.


Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.


Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).


Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.


Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.


Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.


Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.


No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.


(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.


Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.


Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.


O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado


à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).


O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.


Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.


Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.


Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.


Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.


(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;


a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.


Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.


Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.


O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.


Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.


Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.


Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.


E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.


Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.


Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).