sexta-feira, 17 de maio de 2013

"BOBOS I", de Luís Fernando Veríssimo




O bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho – o Rei não entendera uma piada e mandara executá-lo – e o posto estava vago. O Procurador Real foi encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se com seus assessores para fazer um levantamento do mercado de bobos.

- Quem é que está disponível?

- Bem... Tem o Gros.

- Ele não estava com o rei da Saxônia?

- Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência e ele estava se repetindo.

- Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?

- Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino mais divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.

- E o velho Plim?

- Ultrapassado. Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém mais aguenta.

- Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.

- Quem?

- Serbo, o Croata.

- Onde é que ele já trabalhou?

- Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente. Não aprovou porque o rei dormiu.

- Não sei...

- Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.

- Mandem buscá-lo.

Serbo, o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária. Foi chamado com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao Procurador Real, com seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e entusiasmado.

- O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.

- Tudo. Só não engulo espada.

- Imitações?

- Faço uma galinha imitando um homem.

- Isso é diferente...

- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. Com bom gosto, é claro.

- Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se agradasse o Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida e um canto só seu no canil. Antes de começar, quis saber:

- Há algum assunto proibido?

- Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.

- Posso fazer piada sobre tudo?

- Pode.

- A cara do Rei? O cavalo do Rei?

- Tudo.

- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?

- Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na cara. O rei só não gosta de sutileza.

- Como, sutileza?

- Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.

Serbo, o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou.

- Seria uma pena. Somos muito ligados...

- Outra coisa – disse o Procurador Real.

- O que?

- Não fale mal de arqueiros.

- Arqueiros?

- O Rei pertence à Excelsa Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite piada sobre arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora vá se preparar para a sua primeira apresentação.

O bobo saiu enumerando nos dedos, para não esquecer, as três coisas proibidas. Papada, sutileza, arqueiros. Papada, sutileza, arqueiros...

No começo da apresentação de estreia de Serbo, o Croata, houve um momento difícil. Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: “Se o erro de um bobo é bobeada, o erro de um Papa é...” A Rainha ficou tesa no trono e o Rei quase levantou. Mas o bobo completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados. O resto da apresentação foi um sucesso. Nunca o Rei foi tão insultado.

O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um. Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei dava gargalhadas. Todos davam gargalhadas.

- O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.

- Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes de dizerem qualquer coisa.

Mais risadas.

- O povo quer ver sua caveira, majestade.

- O que?

- Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá muito.

- Ah...

- Majestade – continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau – responda se puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?

O Rei ficou sério de repente. Chamou o guarda e ordenou:

- Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.

Para o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra, estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:

- Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?

- Sabia.

- Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.

O Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:

- Eu disse que não era para ser sutil...

- Mas o que foi que eu fiz?

- Criticou os arqueiros.

- Como? Eu ia falar em bacalhau!

- Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.

O bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só quando o Procurador Real já estava saindo pela porta da masmorra é que ele se lembrou de perguntar:

- E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?

Mas era tarde. A porta se fechou.

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