segunda-feira, 26 de maio de 2008

Dostoiévski X Leminski




X




Certa vez, dias atrás (não) mais precisamente, quando esteve de passagem pelo céu, onde o tempo (dizem) não passa (vai ficando), Brás Cubas foi testemunha ocular de uma contenda digna de nota e resolveu publicizá-la, pois não é cabra de ficar omitindo informações. Para tanto, desceu do firmamento celestial e usou este vosso humilde escriba como mediação psicográfica para que você, amigo leitor, também possa ter conhecimento da anedota, cuja perturbação fez desafinar o canto dos arcanjos.

Já experiente pelas paragens de lá, andava calmamente Dostoiévski pelos prados indo tratar de sua hipoglicemia crônica no riacho onde corre só o mel quando foi acidentalmente interpelado de modo violento por um novato*, cuja fama de provocador já ecoava por lá. O que deixou Dostoiévski mais russo ainda foi que o petulante sequer teve a decência de desculpar-se. Enquanto puxava o fôlego para destilar alguns minutos de um dramático sermão psicológico, o recém-chegado apressou-se a interrompê-lo dizendo atrapalhado:

  • É você mesmo quem eu estava procurando.
  • E é assim que você se apresenta a quem tanto desejavas encontrar, seu desafortunado moleque? Não sabes que que está no espaço do céu reservado aos grandes ex-homens de letras, cuja obra em vida terrena teve impacto tão grande que forçou os planejadores celestiais a criarem-nos um espaço reservado? Certamente, não foi este seu caso. Deve estar aqui por algum engano de cadastro. É nisto que dá informatizar o sistema com software terceirizado. Por favor, tenha a bond...

  • Tá, tá. Desculpe-me. Meu nome é Leminski, o Paulo, o filho. Feitas as apresentações, quero que percebas que não sou tão desafortunado assim, pois, se não percebeu este diálogo está sendo feito em russo. Se eu sugerisse que conversássemos em minha língua, o constrangimento seria seu e o papel de desafortunado migraria de mim para ti.

  • Meu rapaz, não me venha com brincadeirinhas. Estou um pouco atrasado para minha dose matutina de glicose. Se me der licença, tenho mais o que fazer.

  • Não, não. Espere. Tenho uma proposta a lhe fazer. Acredito que a falha de não me conhecer não é só sua; muitos por aqui também ainda me ignoram. Não sei se é só porque acabei de chegar ou porque o pessoal do cadastro ainda não fez as honras da casa por não terem conseguido avaliar o impacto da minha obra lá embaixo. Eu sou o Leminski, o Paulo, o filho. Escrevo hai-kais.

  • Menino, não me importa quem você seja. Eu já estou velho por aqui, cansado. Cheguei um século na sua frente e tenho que me resignar com o fato de ter que passar aqui toda a eternidade. Não se preocupe, você terá tempo de sobra para que o impacto da sua obra seja reavaliado e você tenha seu desejado reconhecimento, senão aqui, no andar de baixo, onde ficam os imortais da ABL.

  • Sabia que de onde eu vim o pessoal falava sempre que seu estilo verborrágico já era?

  • É muito fácil classificar agora o meu estilo de verborrágico, uma vez que estamos passando por uma crise de racionamento de envio de mensagens à Terra e eu fico impossibilitado de responder-lhes à altura. Você disse que costumava fazer hai-kais, mas não atina para o fato de que sua concisão pode ser um fruto indireto do esforço a que submeti os tradutores de sua terra? Estimulando-os a estudar a língua preparei o terreno para vocês, pretensiosos concretistas. E tem outra coisa, pensa que eu não sei que eras assíduo leitor de Joyce, cujo esforço maior rendeu-lhe o Ulisses? Perto do meu crime “verborrágico”, o Ulisses é um castigo.

  • Já vi que nem mesmo oferecendo-lhe vodca darás o braço a torcer, não é mesmo? Pois então, lanço-lhe um desafio: me dite um mote qualquer sobre o qual cada um de nós escreverá. O resultado será posto à apreciação de arcanjos de sua escolha para que divulguem o resultado do embate literário entre o russo que não polpa rodeios e o paranaense que nem gosta de touros.

  • Combinado, pois. Teremos ambos o tempo de 35 minutos para terminar, após o que os textos serão prontamente postos à avaliação.

  • OK, então. Amanhã no mesmo horário e lugar. Traga sua torcida.

  • Não precisarei. Vejo-te amanhã. Prepare-se.

No outro dia, no horário combinado, estavam lá os dois combatentes munidos não somente de seus egos inflados, como também de suas canetas e papeis celestiais. O mote combinado entre ambos foi a fugacidade das coisas. Dada a largada, pôs-se Dostoiévski imediatamente a debruçar-se sobre suas laudas completando-as longamente com frases contínuas de especiais referências à natureza dramática da condição humana, enquanto o Leminski se engraçou para o lado de umas “pseudo-anjas” que passavam ali por acaso e tentava conquistá-las com golpes violentos numa harpa usada que adquirira de um candidato à reencarnação. Aos que assistiam a essa cena vinham-lhes imediatamente à memória a fábula da cigarra e da formiga. Com um diferencial: nenhum dos dois haveria de passar fome nunca, uma vez que no céu não há estações do ano e há leite, mel e vida em abundância.

A apenas alguns minutos de terminar o tempo combinado, vendo que Dostoiévski já virava a 36º página completa, o Leminski decide pôr-se a pensar e em menos de 45 segundos terminava sua intervenção sem ter escrito sequer uma letra. Visto isso, e depois de encher os ouvidos dos espectadores com suas comoventes metáforas, Dostoiévski já se considerava vencedor da contenda quando o paranaense decide se pronunciar e revelar sua tão enigmática argumentação sobre a “fugacidade da vida”. Apelando para o estilo mais caro ao seu admirado Castro Alves, Leminski puxa profundamente o fôlego, soltando-o muito lentamente, interrompendo de repente essa sua vagarosa expiração. Frente aos olhares atônitos dos presentes, que definitivamente não faziam a menor idéia do que aquele esquisito estava tentando demonstrar, Leminski com o resto de ar que ainda lhe restava nos pulmões diz em alta voz:

Esvai-se a vida

No ritmo abrupto

De um suspiro

Em suspensão”

2 comentários:

Anônimo disse...

Então você terminou!!!
Muito bom... Muito bom mesmo!!!
Beijinho...

Anônimo disse...

demais cara... nessa vc se superou... parabéns...