domingo, 25 de dezembro de 2011

"A Flor e a Náusea", de Drummond

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


ANDRADE, C. D. Antologia poética. Ed. 60. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 36-37.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Estou lendo: "Filosofia da Práxis" de Adolfo Sánchez Vázquez

"Convém observar, contudo, que o emprego do termo "práxis", com o qual se transcreve em nossa língua a palavra grega πραζις, não nos deve levar a identificar os significados do termo numa e noutra língua. Práxis, em grego antigo, significa a ação de levar algo a cabo, mas uma ação que tem seu fim em si mesma, e que não cria ou produz um objeto alheio ao agente ou a sua atividade. Nesse sentido, a ação moral - do mesmo modo que qualquer tipo de ação que não engendre nada fora de si mesma - é, como diz Aristóteles, práxis; pela mesma razão, a atividade do artesão que produz algo que chega a existir fora do agente de seus atos não é práxis. Este tipo de ação que engendra um objeto exterior ao sujeito e a seus atos é chamado em grego ποιηοιζ, poiésis, que significa literalmente produção ou fabricação, isto é, ato de produzir ou fabriar algo. Nesse sentido, o trabalho do artesão é uma atividade poética e não prática".


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Tomando o céu de assalto: da Comuna de Paris a Oaxaca - 140 anos de auto-organização da classe trabalhadora

Disponibilizo os arquivos em áudio (mp3) das mesas do evento em comemoração ao 140° aniversário da Comuna de Paris que aconteceu na PUC-SP entre 23 a 27 de Maio de 2011.

Façam ótimo proveito!








Dia 23/05

Coubert e a Comuna de Paris, Henry de Carvalho

Marx, Bakunin e a Comuna de Paris, João Bernardo

A Comuna de Paris e a Ditadura do Proletariado, José Paulo Netto

A Comuna de Paris e a Dialética da Revolução Proletária na América Latina, Jason Borba

As Lições da Comuna e a Atualidade da Revolução Social, Bia Abramides


Dia 24/05

Marx, o Estado e a Comuna, Paulo Barsotti

A Importância da Comuna de Paris para a América Latina Atual, Áqulias Mendes

Comuna, Comunas: algumas reflexões sobre as lutas por uma sociedade sem classes e sem patrões, Antônio Ozaí

Ao Sul da Fronteira: o Zapatismo e a Comuna de Oaxaca, Waldo Lao Fuentes

A Comuna: mobilização proletária, experiência democrática, luta anticapitalista, desafio internacionalista, Valério Arcary

Tomando o Céu de Assalto, Rosa Maria Marques

A Guerra Franco-Prussiana e a Comuna de Paris na Visão de Marx, Maria Angélia Borges

Da Comuna de Paris à Estratégia Soviética na Luta pela Emancipação dos Trabalhadores, Edison Salles


Dia 25/05

Marx e a Comuna, Lívia Cotrim

A Comuna e a Transição para o Socialismo, Milton Pinheiro

A Comuna de Paris e o Estado e a Revolução de Lenin, João Bochi

Outras Comunas Virão, Vitto Gianotti

Ética e Revolução, Lúcia Barroco

A Difícil Auto-Organização no Período Capitalista, Rubens Sawaya

A Comuna de Paris: vida como obra de arte, Edson Passetti

Gramsci e a Comuna em Perspectiva, Marcos Del Roio


Dia 26/05

A Comuna e a Transição Soviética, Carlos Eduardo Carvalho

A Comuna na América Latina, Vera Lucia Vieira

A Comuna e a Revolução Russa, Erson Martins Oliveira

A Internacional e a Comuna de Paris, Osvaldo Coggiola


Dia 27/05

Louise Michel na Comuna de Paris, Diana Assunção

A Comuna de Paris e seu Contexto Histórico, Ramon Casa Vilarino

História da Comuna de La Paz de 1971: democracia e revolução na Bolívia, Everaldo de O. Andrade


Algumas das palestras previstas no programa do evento não foram publicadas no canal do youtube da Apropuc. Por outro lado, esta palestra não estava prevista no programa inicial, mas estava no canal:

A Comuna e o Marxismo, Antonio Carlos Silva

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"A Literatura Salva Também", por Urariano Mota

Nos tempos em que pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura era fundamental na vida de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar. Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras, nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas, que se impunham.

– O que eu ganho com isso, professor?

E com isso, o jovem, quando de classe média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tinha a quem me fizera homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo de uma frase de Joaquim Nabuco ganhava a zombaria de toda a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que dignificou a espécie.

– O que eu ganho com isso, professor?

Quando essa pergunta me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma oposição quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas aos periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente, porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência. Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Mas tudo bem, eu me dizia, que se dane o nome, vence a literatura.

No entanto, agora refletindo enquanto escrevo, descubro que ainda assim havia uma grandiosa derrota nessa vitória de extremo recurso. Eu, o professor, falhava como professor. Quero dizer, eu não acendia a chama em seus corações como um fogo de pentecostes, com o calor de que a literatura é um valor permanente, alto e tão alto que por vezes parece substituir a própria vida. Quero dizer, para ser mais preciso: eu não fazia aqueles adolescentes atirarem-se aos livros, que seriam uma casa, um céu, um amigo, uma amiga, um amor, a namorada. Os jovens paravam por momentos diante do relato e depois mudavam de assunto, para outra coisa mais urgente. Afinal, jovens precisam comer, vestir, beber e pegarem em namoradas mais concretas que um soneto de Camões.

O professor falhava porque prática, grosseira e opressora era a onipresença do mundo das necessidades primárias. A literatura não se inscrevia como uma prática nesse mundo. E prática aqui em dois significados: como um hábito e como uma intervenção útil, pragmática. A literatura se opunha a esse mundo prático. Na visão de todos, ela era como um luxo, um caviar… mas me expresso mal, porque o luxo é desejado, o caviar é querido. Era muito pior: a literatura roubava o tempo que deveria ser empregado em outra coisa. Que coisa? Qualquer coisa, coisa qualquer. Os passatempos mais estúpidos seriam mais necessários que essa inominável ladra de energias, dinheiro e ações dignas de serem vividas.

– Em vez de estar lendo, você devia…

Então eu não mais sorria. No mais íntimo de mim eu me julgava, eu me sabia certo como um neurótico. Tudo era o contrário do que eu pensava, mas eu estava certo. Certo como um neurótico silencioso. Pois que louco eu seria a proclamar as venturas da literatura quando todas e quaisquer coisas eram mais venturosas?

Esta semana uma jovem míope, tímida, com 19 anos, deu uma substância e um conforto a essa qualquer coisa, coisa qualquer que para nada serve, que rouba o tempo e deixa os seus cultores neuróticos, malucos ou esquizofrênicos. Na altura em que a mocinha atravessava um momento difícil, prestou concurso para uma bolsa de estudo na Alemanha. Pois esta semana saiu o resultado: ela foi um dos três jovens escolhidos. E por isso viaja, e por um ano terá bolsa líquida e livre de 600 euros, e mais universidade, casa e alimentação. Mas como, eu perguntei a ela, como você conseguiu, se não é uma falante de alemão? Ao que ela, em seu espírito verdadeiro, me respondeu:

– Eu fui salva pela literatura. Em minha carta contei como Goethe entrou em minha vida.

Ah, sabem? Hoje é domingo, faz sol, tudo é luz. O neurótico aqui dedica à jovem esta crônica.

Publicado no blog da Boitempo em 22/11/2011.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Do Método (ou de como produzir textos acadêmicos)


- Tens aí o objeto.
- Não o vejo, mestre.
- Um momento: recortando bem, vês melhor agora?
- Mais ou menos. Ainda meio informe.
- Ah, claro, as arestas. Apare-as. Pronto. Está claro?
- Ficou até demais, mestre. Luminoso como o sol quase a cegar-me.
- Sem problemas. Tome estes óculos escuros.
- Oh, sim, percebo bem! Mas e agora? Como faço?
- Vê bem o objeto? Isole-o, separe-o dos outros, não o deixe cair, nem se mover. Sinta-o, contornando bem os seus limites. Agora, descreva-o.
- Como o vejo, mestre?
- Sim, tal como se lhe aparece. Assim o conhecerá bem.
- Entendo. E agora?
- Faça o mesmo com aqueles outros.
- Igualzinho?
- Claro! São de igual natureza.
- Perfeito. Agora os conheço!
- Qual o que! Ainda há que relacioná-los.
- Ah, sim. Como pude esquecer! Mas como o faço?
- Tens a hipótese, não tens? Teste-as.
- Testei.
- Escolha o sentido da determinação. Significou?
- Significou!
- No intervalo padrão?
- Sim.
- Pronto?
- Sim.
- Publique!

sábado, 19 de novembro de 2011

Estou Lendo "Ensaio sobre a Lucidez", de José Saramago

Discurso do personagem "presidente da república" anunciando à população da capital - que, em seus 85%, votara em branco duas vezes nas últimas eleições - a retirada de toda a estrutura do governo para uma outra cidade e a manutenção do estado de sítio sobre a capital como medida de repressão. O discurso vale como demonstração da habilidade com que Saramago maneja os chavões e as ideias feitas das figuras que ocupam os cargos de poder. A familiaridade ou o não estranhamento com que reconhecemos as ideias expressas denota que o senso comum está encrustado em nós - ou que somos adeptos do senso comum elevado à pretensão de ciência social representado pela obra de Pareto, Mosca e asseclas. A ficção servindo à didática da vida.


"Eis por conseguinte o discurso completo, a que só faltam, por intransponível impossibilidade de transcrição, à tremura da voz, a compunção do gesto, a aguinha ocasional de uma lágrima mal contida, Falo-vos com o coração nas mãos, falo-vos despedaçado pela dor de um afastamento incompreensível, como um pai abandonado pelos filhos a quem tanto amara, perdidos, perplexos, eles e eu, ante a sucessão de uns acontecimentos insólitos que vieram romper a sublime harmonia familiar. E não digais que fomos nós, que fui eu próprio, que foi o governo da nação, assim como os deputados eleitos, os que nos separámos do povo. É certo que nos retirámos essa madrugada para outra cidade que a partir de agora passará a ser a capital do país, é certo que decretámos para esta capital que foi e deixou de ser um rigoroso estado de sítio que, pela própria força das coisas, vai dificultar seriamente o funcionamento equilibrado de uma aglomeração urbana tanta importância e com estas dimensões físicas e sociais, é certo que vos encontrais cercados, rodeados, confinados dentro do perímetro da cidade, que não podeis sair dela, que se o tentais sofrereis as consequências de uma imediata resposta pelas armas, mas p que não podereis nunca é dizer que a culpa a têm estes a quem a vontade popular, livremente expressa em sucessivas, pacíficas e leais disputas democráticas, confiou os destinos da nação para que a defendêssemos de todos os perigos internos e externos. Vós, sim, sois os culpados, vós, sim sois os que ignominiosamente haveis desertado do concerto nacional para seguirdes o caminho torcido da subversão, da indisciplina, do mais perverso e diabólico desafio ao poder legítimo do estado de que há memória em toda a história das nações. Não vos queixeis de nós, queixai-vos antes de vós próprios, não destes que também pela minha voz falam, estes, aos governo me refiro, que uma e muitas vezes vos pediram, que digo eu, rogaram e imploraram que emendásseis a vossa maliciosa obstinação, cujo sentido último, apesar dos ingentes esforços de investigação postos em marcha pelas autoridades do estado, ainda hoje, desgraçadamente, se mantém impenetrável. Durante séculos e séculos fostes a cabeça do país e o orgulho da nação, durante séculos e séculos, quando em horas de crise nacional, de aflição colectiva, o nosso povo habituou-se a virar os olhos para este burgo, para estas colinas, sabendo que daqui lhe acudiria o remédio, a palavra consoladora, o rumo certo para o futuro. Haveis atraiçoado a memória dos vossos antepassados, eis a dura verdade que atormentará para todo o sempre a vossa consciência, eles ergueram, pedra a pedra, o altar da pátria, vós decidistes destruí-lo, que a vergonha caia pois sobre vós. Com toda a minha alma, que acreditar que a vossa loucura será transitória, que não perdurá, quero pensar que amanhã, um amanhã que rezo aos céus não se faça esperar demasiado, o arrependimento penetrará docemente nos vossos corações e voltareis o congraçar-vos com a comunidade nacional, raiz de raízes, e com a legalidade, regressando, como o filho pródigo, à casa paterna. Agora sois uma cidade sem lei. Não tereis aqui um governo para vos impor o que deveis e o que não deveis fazer, como deveis e como não deveis comportar-vos, as ruas serão vossas, pertencem-vos, usai-as como vos apeteça, nenhuma autoridade aparecerá a cortar-vos o passo e a dar-vos o passo e a dar-vos o bom conselho, mas também, atentai bem no que vos digo, nenhuma autoridade virá proteger-vos de ladrões, violadores e assassinos, essa será a vossa liberdade, desfrutai dela. Talvez imagineis, ilusoriamente, que, entregados ao vosso alvedrio e aos vossos livres caprichos, sereis capazes de organizar melhor e melhor defender as vossas vidas que o que em favor delas nós havíamos feito com os métodos os antigos e as antigas leis. Terrível equívoco o vosso. Antes cedo que tarde sereis obrigados a tomar chefes que vos governem, se é que não serão eles a irromper bestialmente do caos inevitável em que ireis cair, e impor-vos a sua lei. Então vos dareis conta da dimensão trágica do vosso engano. Talvez venhais a rebelar-vos como no tempo dos constrangimentos autoritários, como no ominoso tempo das ditaduras, mas, não tenhais ilusões, sereis reprimidos com igual violência, e não sereis chamados a votar porque não haverá eleições, ou talvez, sim, as haja, mas não serão isentas, limpas e honestas com as que haveis desprezado, e assim será até ao dia em que as forças armadas que, comigo e com o governo da nação, hoje decidiram abandonar-vos ao destino que havíeis escolhido, tenham de regressar para vos libertar dos monstros por vós próprios gerados. Todo o vosso sofrimento haverá sido inútil, vã toda a vossa teimosia, e então compreendereis, demasiado tarde, que os direitos só o são integralmente nas palavras com que tenham sido enunciados e no pedaço de papel em que hajam sido consignados, quer ele seja uma constituição, uma lei ou um regulamento qualquer, compreendereis, oxalá convencidos, que a sua aplicação desmedida, inconsiderada, convulsionaria a sociedade mais solidamente estabelecida, compreendereis, enfim, que o simples senso comum ordena que os tomemos como mero símbolo daquilo que deveria ser, se fosse, e nunca como sua efectiva e possível realidade. Votar em branco é um direito irrenunciável, ninguém vo-lo negará, mas, tal como proibimos as crianças que brinquem com o lume, também aos povos prevenimos de que vai contra a sua segurança mexer na dinamite. Vou terminar. Tomai a severidade dos meus avisos, não como uma ameaça, mas como um cautério para a infecta supuração política que haveis gerado ao vosso seio e em que vos estais revolvendo. Voltareis a ver-me e a ouvir-me no dia em que tiverdes merecido o perdão que, apesar de tudo, estamos inclinados a conceder-vos, eu, vosso presidente, o governo que haveis elegido em melhores tempos, e a parte sã e pura do nosso povo, essa de que neste momento não sois dignos. Até esse dia, adeus, e que o senhor vos proteja. A imagem grave e compungida do chefe de estado desapareceu e em seu lugar tornou a surgir a bandeira hasteada. O vento agitava-a de cá para lá, de lá para cá, como uma tonta, ao mesmo tempo que o hino repetia os bélicos acordes e os marciais acentos que haviam sido compostos em eras passadas de imparável exaltação patriótica, mas que agora pareciam soar a rachado. Sim senhor, o homem falou bem, resumiu o mais velho da família, e há que reconhecer que tem toda a razão no que disse, as crianças não devem brincar com o lume porque depois é certo e sabido que mijam na cama".

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 94-97.