sábado, 19 de novembro de 2011

Estou Lendo "Ensaio sobre a Lucidez", de José Saramago

Discurso do personagem "presidente da república" anunciando à população da capital - que, em seus 85%, votara em branco duas vezes nas últimas eleições - a retirada de toda a estrutura do governo para uma outra cidade e a manutenção do estado de sítio sobre a capital como medida de repressão. O discurso vale como demonstração da habilidade com que Saramago maneja os chavões e as ideias feitas das figuras que ocupam os cargos de poder. A familiaridade ou o não estranhamento com que reconhecemos as ideias expressas denota que o senso comum está encrustado em nós - ou que somos adeptos do senso comum elevado à pretensão de ciência social representado pela obra de Pareto, Mosca e asseclas. A ficção servindo à didática da vida.


"Eis por conseguinte o discurso completo, a que só faltam, por intransponível impossibilidade de transcrição, à tremura da voz, a compunção do gesto, a aguinha ocasional de uma lágrima mal contida, Falo-vos com o coração nas mãos, falo-vos despedaçado pela dor de um afastamento incompreensível, como um pai abandonado pelos filhos a quem tanto amara, perdidos, perplexos, eles e eu, ante a sucessão de uns acontecimentos insólitos que vieram romper a sublime harmonia familiar. E não digais que fomos nós, que fui eu próprio, que foi o governo da nação, assim como os deputados eleitos, os que nos separámos do povo. É certo que nos retirámos essa madrugada para outra cidade que a partir de agora passará a ser a capital do país, é certo que decretámos para esta capital que foi e deixou de ser um rigoroso estado de sítio que, pela própria força das coisas, vai dificultar seriamente o funcionamento equilibrado de uma aglomeração urbana tanta importância e com estas dimensões físicas e sociais, é certo que vos encontrais cercados, rodeados, confinados dentro do perímetro da cidade, que não podeis sair dela, que se o tentais sofrereis as consequências de uma imediata resposta pelas armas, mas p que não podereis nunca é dizer que a culpa a têm estes a quem a vontade popular, livremente expressa em sucessivas, pacíficas e leais disputas democráticas, confiou os destinos da nação para que a defendêssemos de todos os perigos internos e externos. Vós, sim, sois os culpados, vós, sim sois os que ignominiosamente haveis desertado do concerto nacional para seguirdes o caminho torcido da subversão, da indisciplina, do mais perverso e diabólico desafio ao poder legítimo do estado de que há memória em toda a história das nações. Não vos queixeis de nós, queixai-vos antes de vós próprios, não destes que também pela minha voz falam, estes, aos governo me refiro, que uma e muitas vezes vos pediram, que digo eu, rogaram e imploraram que emendásseis a vossa maliciosa obstinação, cujo sentido último, apesar dos ingentes esforços de investigação postos em marcha pelas autoridades do estado, ainda hoje, desgraçadamente, se mantém impenetrável. Durante séculos e séculos fostes a cabeça do país e o orgulho da nação, durante séculos e séculos, quando em horas de crise nacional, de aflição colectiva, o nosso povo habituou-se a virar os olhos para este burgo, para estas colinas, sabendo que daqui lhe acudiria o remédio, a palavra consoladora, o rumo certo para o futuro. Haveis atraiçoado a memória dos vossos antepassados, eis a dura verdade que atormentará para todo o sempre a vossa consciência, eles ergueram, pedra a pedra, o altar da pátria, vós decidistes destruí-lo, que a vergonha caia pois sobre vós. Com toda a minha alma, que acreditar que a vossa loucura será transitória, que não perdurá, quero pensar que amanhã, um amanhã que rezo aos céus não se faça esperar demasiado, o arrependimento penetrará docemente nos vossos corações e voltareis o congraçar-vos com a comunidade nacional, raiz de raízes, e com a legalidade, regressando, como o filho pródigo, à casa paterna. Agora sois uma cidade sem lei. Não tereis aqui um governo para vos impor o que deveis e o que não deveis fazer, como deveis e como não deveis comportar-vos, as ruas serão vossas, pertencem-vos, usai-as como vos apeteça, nenhuma autoridade aparecerá a cortar-vos o passo e a dar-vos o passo e a dar-vos o bom conselho, mas também, atentai bem no que vos digo, nenhuma autoridade virá proteger-vos de ladrões, violadores e assassinos, essa será a vossa liberdade, desfrutai dela. Talvez imagineis, ilusoriamente, que, entregados ao vosso alvedrio e aos vossos livres caprichos, sereis capazes de organizar melhor e melhor defender as vossas vidas que o que em favor delas nós havíamos feito com os métodos os antigos e as antigas leis. Terrível equívoco o vosso. Antes cedo que tarde sereis obrigados a tomar chefes que vos governem, se é que não serão eles a irromper bestialmente do caos inevitável em que ireis cair, e impor-vos a sua lei. Então vos dareis conta da dimensão trágica do vosso engano. Talvez venhais a rebelar-vos como no tempo dos constrangimentos autoritários, como no ominoso tempo das ditaduras, mas, não tenhais ilusões, sereis reprimidos com igual violência, e não sereis chamados a votar porque não haverá eleições, ou talvez, sim, as haja, mas não serão isentas, limpas e honestas com as que haveis desprezado, e assim será até ao dia em que as forças armadas que, comigo e com o governo da nação, hoje decidiram abandonar-vos ao destino que havíeis escolhido, tenham de regressar para vos libertar dos monstros por vós próprios gerados. Todo o vosso sofrimento haverá sido inútil, vã toda a vossa teimosia, e então compreendereis, demasiado tarde, que os direitos só o são integralmente nas palavras com que tenham sido enunciados e no pedaço de papel em que hajam sido consignados, quer ele seja uma constituição, uma lei ou um regulamento qualquer, compreendereis, oxalá convencidos, que a sua aplicação desmedida, inconsiderada, convulsionaria a sociedade mais solidamente estabelecida, compreendereis, enfim, que o simples senso comum ordena que os tomemos como mero símbolo daquilo que deveria ser, se fosse, e nunca como sua efectiva e possível realidade. Votar em branco é um direito irrenunciável, ninguém vo-lo negará, mas, tal como proibimos as crianças que brinquem com o lume, também aos povos prevenimos de que vai contra a sua segurança mexer na dinamite. Vou terminar. Tomai a severidade dos meus avisos, não como uma ameaça, mas como um cautério para a infecta supuração política que haveis gerado ao vosso seio e em que vos estais revolvendo. Voltareis a ver-me e a ouvir-me no dia em que tiverdes merecido o perdão que, apesar de tudo, estamos inclinados a conceder-vos, eu, vosso presidente, o governo que haveis elegido em melhores tempos, e a parte sã e pura do nosso povo, essa de que neste momento não sois dignos. Até esse dia, adeus, e que o senhor vos proteja. A imagem grave e compungida do chefe de estado desapareceu e em seu lugar tornou a surgir a bandeira hasteada. O vento agitava-a de cá para lá, de lá para cá, como uma tonta, ao mesmo tempo que o hino repetia os bélicos acordes e os marciais acentos que haviam sido compostos em eras passadas de imparável exaltação patriótica, mas que agora pareciam soar a rachado. Sim senhor, o homem falou bem, resumiu o mais velho da família, e há que reconhecer que tem toda a razão no que disse, as crianças não devem brincar com o lume porque depois é certo e sabido que mijam na cama".

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 94-97.

Um comentário:

Tiago M. Franco disse...

Gostei bastante deste livro. Saramago não tem bons livros, ou sou muito bons ou obras-primas.