sábado, 18 de fevereiro de 2012

Carta de Engels a Mehring e "a questão da ideologia"

Carta de Engels a Franz Mehring

"Londres, 14 de julho de 1893

Prezado Sr. Mehring:

Hoje, enfim, posso agradecer-lhe a gentileza com que me obsequiou ao enviar-me A Lenda de Lessing. Não queria limitar-me a um formal aviso de recebimento; queria dizer-lhe algo sobre o seu livro, o seu conteúdo – donde a demora da minha resposta.

Começarei pelo final, ou seja, pelo apêndice sobre o materialismo histórico, no qual o Senhor expõe magistralmente os fatos principais de forma a convencer a qualquer pessoa livre de preconceitos. Se algo posso lhe objetar, é que o Senhor me atribua mais méritos dos que realmente me cabem, incluindo o que eu provavelmente descobriria com o tempo – se Marx, com sua visão mais rápida e mais ampla, não o tivesse descoberto antes. Quando se tem a sorte de trabalhar por 40 anos com um homem como Marx, é natural, durante sua vida, que não se goze do reconhecimento que se julga merecer; mas quando o grande homem morre, costuma-se elogiar mais que o devido a seu companheiro de estatura menor. Creio que este é o meu caso. A história acabará por colocar as coisas no seu lugar, mas, então, eu já terei morrido tranquilamente e não saberei de nada.

Há, ainda, um ponto – o único – sobre o qual geralmente nem Marx nem eu nos detivemos suficientemente em nossos escritos e, portanto, do qual a responsabilidade nos cabe igualmente a ambos. Insistíamos fortemente – e estávamos obrigados a fazê-lo – em derivar dos fatos econômicos básicos as ideias políticas, jurídicas etc. e os atos condicionados por elas. Ao proceder deste modo, o conteúdo nos fazia esquecer a forma, ou seja, o processo de gênese dessas ideias etc. Assim, oferecemos aos nossos adversários um bom pretexto para erros e tergiversações – veja-se o exemplo patente de um Paul Barth.

A ideologia é um processo que o chamado pensador realiza, de fato, conscientemente – mas com uma falsa consciência. As verdadeiras forças propulsoras que o movem permanecem ignoradas por ele – de outro modo, tal processo não seria ideológico. Ele imagina forças propulsoras falsas ou aparentes. Como se trata de um processo discursivo, deduz seu conteúdo e sua forma do pensamento puro – seja o seu, seja o de seus predecessores. Trabalha exclusivamente com material discursivo, que aceita acriticamente, como criação do pensamento, sem submetê-lo a outro processo de investigação, sem buscar outra fonte mais afastada e independente do pensamento; para ele, o material discursivo é a própria evidência, posto que, para ele, todos os atos para os quais o pensamento serve como mediador têm nele o seu fundamento último.

O ideólogo histórico (emprego a palavra histórico como síntese de político, jurídico, filosófico, teológico, em suma: de todos os campos que pertencem à sociedade e não só à natureza), o ideólogo histórico encontra, pois, em todos os campos científicos um material que se constitui livremente no pensamento das gerações anteriores e que penetrou no cérebro destas gerações sucessivas por um processo autônomo e independente de evolução. Está claro que, para esta evolução, podem ter contribuído também alguns fatos externos, inseridos num campo ou noutro, mas, segundo a premissa tácita de que se parte, tais fatos são, por seu turno, simples frutos de um processo discursivo – e assim não se sai dos domínios do pensamento puro, que parece ter digerido admiravelmente até os fatos mais resistentes.

Esta aparência de uma história independente das formas de regimes estatais, dos sistemas jurídicos, dos conceitos ideológicos em cada campo específico de investigação é o que mais fascina à maioria das pessoas. Quando Lutero e Calvino “superam” a religião católica oficial, quando Hegel “supera” Kant e Fichte e Rousseau, com seu contrato social republicano, “supera” indiretamente o Montesquieu constitucionalista – tudo se passa como num processo que se move dentro da teologia, da filosofia, da teoria política, que representa uma etapa na história dessas esferas do pensar e em anda transcende o campo do pensamento. E quando a isto se acrescentou a ilusão burguesa da perenidade e da inevitabilidade da produção capitalista, até mesmo a “superação” dos mercantilistas pelos fisiocratas e por A. Smith é tomada simplesmente como uma vitória exclusiva do pensamento; não é abordada como reflexo ideológico de uma mudança na vida econômica, mas como a visão justa, enfim alcançada, de condições reais vigentes sempre e em todas as partes; se Ricardo Coração de Leão e Felipe Augusto, em vez de se meterem com as Cruzadas, tivessem implantado o livre-cambismo, nos poupariam 500 anos de miséria e ignorância.

A este problema, que aqui só posso mencionar de passagem, parece-me que todos nós dedicamos menos atenção que a necessária. É a história de sempre: no início, para determinar o conteúdo, acaba-se por descuidar da forma. Eu fiz o mesmo, como assinalo, e o fato me salta à vista post festum. Portanto, está longe do meu espírito censurá-lo por isso: não tenho o direito de fazê-lo porque pequei antes que o Senhor – mas quero, sobre este ponto, chamar a sal atenção para o futuro.

A isto se relaciona também a inépcia da visão dos ideólogos: como negamos um desenvolvimento histórico independente às distintas esferas ideológicas que desempenham um papel na história, eles deduzem que lhe negamos igualmente qualquer eficácia histórica. Este modo de ver se baseia numa representação vulgar e antidialética de causa e efeito como dois polos rigidamente opostos, com o absoluto esquecimento do jogo de ações e reações. Que um elemento histórico, uma vez esclarecido por outros fatos (que, em última instância, são fatos econômicos), repercuta por sua vez sobre aquilo que o cerca e inclusive sobre suas causas – eis o que esquecem esses cavalheiros, às vezes muito intencionalmente, como é o caso, por exemplo, de Barth, ao mencionar os sacerdotes e a religião (como lembra o Senhor na página 475 de seu livro). Gostei muito da sua maneira de acertar as contas com esse indivíduo, cuja vulgaridade supera o imaginável. E é a ele que nomeiam professor de história em Leipzig! Devo dizer que o velho Wachsmuth, igualmente pouco dotado, ainda que bem mais sensível aos fatos, era um tipo muito diferente.

[...]"

Excerto extraído de Marx, K.; ENGELS, F. Cultura, Arte e Literatura: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010, pp.109-111.

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