quarta-feira, 4 de abril de 2012

"Durante a Festa", de Oswald de Andrade

(De São Paulo) - Do salão gigantesco, vem um som cadenciado e igual que dá ideia dum batuque imenso, onde se agita, rodopia e estaca a multidão mais vária e pitoresca da cidade. É o povo que se diverte, é o povo que se agita, é o povo que se entusiasma. Estamos no baile da Cruz Vermelha Russa, que conseguiu reunir no Estádio do Pacaembu um público duas vezes superior ao das grandes partidas de futebol entre São Paulo e Rio. Uma renda que supera a dos finais de campeonato. Mas não é só o povo. O milionário Horácio Lafer reteve três mesas de proscênio. No aristocrático "Cantinho Russo" brilham o banqueiro Nelson Otoni de Resende e o industrial Roberto Simonsen com suas mesas faustosas. Os artistas e os literatos deram-se ponto de encontro ao ar livre. Yeda e Murilo Miranda, Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Maurício Loureiro Gama, Tarsila e Luis Martins, Caio Prado Júnior, Oswald de Andrade Filho, Paulo Emílio e inúmeros outros. No pano de fundo do palco um mapa imenso e colorido onde a URSS parece engolir uma faixa pequenina de terra a Oeste.

Vendendo bilhetes de tômbola, cigarros, flores, passam pelo público, nos seus trajes característicos, as russas esbeltas, brancas, sorridentes. Entre elas fulge a sra. Bela Karawaiwa da Silva Prado.

Nesses tumultos, são sempre os isolados e os refratários que me chamam a atenção. Vejo um homem velhusco encostar-se friamente a um pilar. Parece não dar nenhuma atenção à literatura dos alto-falantes, às bandas militares, mararciais e coloridas, que se revezam no palco, aos bonecos de Don e do Kuban, que, com suas blusas bordadas e gritantes e suas bombachas de cor, Presas a botas curtas e lustrosas, executam números frenéticos, rodopios espetaculares, pulos de urso e voos de cobra. Parece que o exército-bólido de Vatutin desceu sobre a cena para magnetizar o mundo. Aproximo-me do homem silencioso. Interpelo-o. – Não está gostando?

- Estou aqui esperando minha mulher... Ela me deixou aqui e tenho receio de me ausentar...

O homem falava com a voz um pouco rouca e gasta.

- Não dança, não brinca...

- Já dancei muito, já abusei... Mas, de dois anos para cá, sou escudeiro. Sim, senhor. Escudeiro de minha mulher. O senhor estranha? Sou casado com uma russa, uma russa nascida em Stalingrado. Imagine! Ela é patronesse desta festa. Olhe, lá vai ela!

Nesse momento vi uma gigantesca figura ariana, aberta num sorriso de dentes perfeitos, num traje camponês dos Urais, avental e auréola de seda branca, atravessar o salão repleto, em reta, sem um tropeço, levando nas mãos duas bandejas cheias.

- Que quer o senhor que um homem miúdo como eu faça com esse artilheiro? E note que são todas assim. E assim é toda a Rússia. Nós pensávamos que a Alemanha é que era forte. Que blefe! Veja essa raça virginal que se alimenta de borche e de vodka! Minha esposa, como qualquer das suas conacionais é capaz de empurrar um tank nas lamas da Bessarábia e de bombardear Berlim num Stormovique!...

- É, por isso que eles ganham a guerra - arrisquei!

Os olhos do homem sumido se avivaram de repente. Perguntou-me:

- E o senhor pensa que nós consentiremos? Nós os capitalistas, os últimos. Olhe, meu amigo, desde Stalingrado que estamos tratando de rejuvenescer quem destruímos inadvertidamente. Sabe, Hitler é um grande idiota! Traiu-nos. E agora estamos no maior dilema da história...

- Não entendo...

- Precisamos matá-lo, mas... mas... Certas ressurreições são difíceis! Também... o povo acordou...

- Por isso é que o senhor está encostado nessa quinta-coluna do salão...
- Humildemente, meu caro. Outros há nos tronos, nos bancos, nas cadeiras fofas do poder. Todos bons democratas como eu.

Sorriu enigmático, fino e terminou:

- No tabuleiro internacional, haverá ainda muita surpresa. O senhor vai ver!

24/03/1944.

ANDRADE, Oswald. Telefonema. 2ª Ed. Coleção Obras Completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 2007, pp. 108-110.

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