(De São Paulo) - Do salão
gigantesco, vem um som cadenciado e igual que dá ideia dum batuque imenso, onde
se agita, rodopia e estaca a multidão mais vária e pitoresca da cidade. É o povo
que se diverte, é o povo que se agita, é o povo que se entusiasma. Estamos no baile
da Cruz Vermelha Russa, que conseguiu reunir no Estádio do Pacaembu um público duas
vezes superior ao das grandes partidas de futebol entre São Paulo e Rio. Uma
renda que supera a dos finais de campeonato. Mas não é só o povo. O milionário Horácio
Lafer reteve três mesas de proscênio. No aristocrático "Cantinho Russo"
brilham o banqueiro Nelson Otoni de Resende e o industrial Roberto Simonsen com
suas mesas faustosas. Os artistas e os literatos deram-se ponto de encontro ao
ar livre. Yeda e Murilo Miranda, Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Maurício Loureiro
Gama, Tarsila e Luis Martins, Caio Prado Júnior, Oswald de Andrade Filho, Paulo
Emílio e inúmeros outros. No pano de fundo do palco um mapa imenso e colorido onde
a URSS parece engolir uma faixa pequenina de terra a Oeste.
Vendendo bilhetes de
tômbola, cigarros, flores, passam pelo público, nos seus trajes característicos,
as russas esbeltas, brancas, sorridentes. Entre elas fulge a sra. Bela Karawaiwa
da Silva Prado.
Nesses tumultos, são sempre
os isolados e os refratários que me chamam a atenção. Vejo um homem velhusco encostar-se
friamente a um pilar. Parece não dar nenhuma atenção à literatura dos
alto-falantes, às bandas militares, mararciais e coloridas, que se revezam no
palco, aos bonecos de Don e do Kuban, que, com suas blusas bordadas e gritantes
e suas bombachas de cor, Presas a botas curtas e lustrosas, executam números frenéticos,
rodopios espetaculares, pulos de urso e voos de cobra. Parece que o exército-bólido
de Vatutin desceu sobre a cena para magnetizar o mundo. Aproximo-me do homem silencioso.
Interpelo-o. – Não está gostando?
- Estou aqui esperando
minha mulher... Ela me deixou aqui e tenho receio de me ausentar...
O homem falava com a voz
um pouco rouca e gasta.
- Não dança, não brinca...
- Já dancei muito, já
abusei... Mas, de dois anos para cá, sou escudeiro. Sim, senhor. Escudeiro de
minha mulher. O senhor estranha? Sou casado com uma russa, uma russa nascida em
Stalingrado. Imagine! Ela é patronesse desta festa. Olhe, lá vai ela!
Nesse momento vi uma gigantesca
figura ariana, aberta num sorriso de dentes perfeitos, num traje camponês dos Urais,
avental e auréola de seda branca, atravessar o salão repleto, em reta, sem um
tropeço, levando nas mãos duas bandejas cheias.
- Que quer o senhor
que um homem miúdo como eu faça com esse artilheiro? E note que são todas
assim. E assim é toda a Rússia. Nós pensávamos que a Alemanha é que era forte. Que
blefe! Veja essa raça virginal que se alimenta de borche e de vodka! Minha esposa, como qualquer das suas
conacionais é capaz de empurrar um tank
nas lamas da Bessarábia e de bombardear Berlim num Stormovique!...
- É, por isso que eles
ganham a guerra - arrisquei!
Os olhos do homem
sumido se avivaram de repente. Perguntou-me:
- E o senhor pensa que
nós consentiremos? Nós os capitalistas, os últimos. Olhe, meu amigo, desde
Stalingrado que estamos tratando de rejuvenescer quem destruímos inadvertidamente.
Sabe, Hitler é um grande idiota! Traiu-nos. E agora estamos no maior dilema da história...
- Não entendo...
- Precisamos matá-lo,
mas... mas... Certas ressurreições são difíceis! Também... o povo acordou...
- Por isso é que o
senhor está encostado nessa quinta-coluna do salão...
- Humildemente, meu caro.
Outros há nos tronos, nos bancos, nas cadeiras fofas do poder. Todos bons
democratas como eu.
Sorriu enigmático, fino
e terminou:
- No tabuleiro internacional,
haverá ainda muita surpresa. O senhor vai ver!
24/03/1944.
ANDRADE, Oswald. Telefonema.
2ª Ed. Coleção Obras Completas de Oswald
de Andrade. São Paulo: Globo, 2007, pp. 108-110.
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