quarta-feira, 29 de maio de 2013

"O Povo", de Luis Fernando Veríssimo

Não posso deixar de concordar com tudo o que dizem do povo. É uma posição impopular, eu sei, mas o que fazer? É a hora da verdade. O povo que me perdoe, mas ele merece tudo o que se tem dito dele. E muito mais.

As opiniões recentemente emitidas sobre o povo até foram tolerantes. Disseram, por exemplo, que o povo se comporta mal em grenais. Disseram que o povo é corrupto. Por um natural escrúpulo, não quiseram ir mais longe. Pois eu não tenho escrúpulo.

 
O povo se comporta mal em toda a parte, não apenas no futebol. O povo tem péssimas maneiras. O povo se veste mal. Não raro, cheira mal também. O povo faz xixi e cocô em escala industrial. Se não houvesse o povo, não teríamos o problema ecológico. O povo não sabe comer. O povo tem um gosto deplorável. O povo é insensível. O povo é vulgar.

A chamada explosão demográfica é culpa exclusivamente do povo. O povo se reproduz numa proporção verdadeiramente suicida. O povo é promíscuo e sem-vergonha. A super-população nos grandes centros se deve ao povo. As lamentáveis favelas que tanto prejudicam nossa paisagem urbana foram inventadas pelo povo, que as mantém contra os preconceitos da higiene e da estética.

Responda, sem meias palavras: haveria os problemas de trânsito se não fosse pelo povo? O povo é um estorvo.

É notória a incapacidade política do povo. O povo não sabe votar. Quando vota, invariavelmente vota em candidatos populares que, justamente por agradarem ao povo, não podem ser coisa boa.

O povo é pouco saudável. Há, sabidamente, 95 por cento mais cáries dentárias entre o povo. O índice de morte por malnutrição entre o povo é assustador. O povo não se cuida. Estão sempre sendo atropelados. Isto quando não se matam entre si. O banditismo campeia entre o povo. O povo é ladrão. O povo é viciado. O povo é doido. O povo é imprevisível. O povo é um perigo.

O povo não tem a mínima cultura. Muitos nem sabem ler ou escrever. O povo não viaja, não se interessa por boa música ou literatura, não vai a museus. O povo não gosta de trabalho criativo, prefere empregos ignóbeis e aviltantes. Isto quando trabalha, pois há os que preferem o ócio contemplativo, embaixo das pontes. Se não fosse o povo nossa economia funcionaria como uma máquina. Todo mundo seria mais feliz sem o povo. O povo é deprimente. O povo deveria ser eliminado.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Reflexões Grundrissianas


Como forma universal da riqueza, o capital se diferencia de si mesmo apenas do ponto de vista quantitativo, ou seja, do ponto de vista de o sujeito ter mais ou menos capital – quando se é capitalista – ou mais ou menos salário – quando se é trabalhador assalariado. O aspecto qualitativo da riqueza social – o conjunto de valores de uso – importa, na esfera econômica, apenas como veículo de valor. É por isso que, sob o modo de produção capitalista, a forma social da riqueza é sempre impelida, por sua própria natureza, para além de seus limites imediatos: o horizonte da ampliação do valor tende virtualmente ao infinito. Somente por conta de sua natureza abstrata é que a forma social da riqueza capitalista – o valor – subordina progressivamente todas as atividades humanas a seus domínios. Marx lembra de acontecimentos do Império Romano, afirmando que a riqueza desfrutável “aparece como dissipação ilimitada, dissipação que procura igualmente elevar a fruição à imaginária ilimitabilidade devorando salada de pérolas” (Grundrisse, p. 210). Sob as condições de produção capitalistas, o valor atinge a sua forma mais desenvolvida. Assim, ao subordinar os produtos do trabalho que satisfazem necessidades que vão do “estômago à fantasia” à lógica auto-expansiva do valor, o caráter mercantil das coisas (especialmente, da força de trabalho) e a sua dinâmica acabam por impor determinações a todos os âmbitos, digamos, “extra-econômicos” da vida social. 

O significado social da “fruição imaginária ilimitada” a que Marx alude se referindo ao Império Romano é extremamente atual aos nossos tempos. Este significado, fundado na impressão de virtual inesgotabilidade da riqueza, acaba sendo internalizado pelos sujeitos, passando a compor os "instrumentos psicológicos" (Vigotski) que serão mobilizados em nossas consciências no planejamento de nossas atividades diárias. As necessidades a serem satisfeitas pelos sujeitos passam a ser elaboradas em termos de “fruição imaginária inesgotável”, o que significa, por exemplo, que a compra, a posse e o uso de determinada mercadoria satisfaz apenas por um instante fugaz, uma vez que a subjetividade, mal se encontrando com o objeto da necessidade anterior, já está mobilizada para o próximo objeto de desejo. Em termos individuais, a “dissipação ilimitada” é o modo de manifestação de uma subjetividade ideologicamente moldada para lubrificar as engrenagens invisíveis dos mecanismos de auto-valorização do valor, seja mediante a intensificação do trabalho ("trabalhando mais, eu ganho mais, eu compro mais"), seja na qualidade de consumidores compulsivos em busca de uma vida hedonista, que, contudo é realmente impossível.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

"BOBOS I", de Luís Fernando Veríssimo




O bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho – o Rei não entendera uma piada e mandara executá-lo – e o posto estava vago. O Procurador Real foi encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se com seus assessores para fazer um levantamento do mercado de bobos.

- Quem é que está disponível?

- Bem... Tem o Gros.

- Ele não estava com o rei da Saxônia?

- Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência e ele estava se repetindo.

- Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?

- Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino mais divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.

- E o velho Plim?

- Ultrapassado. Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém mais aguenta.

- Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.

- Quem?

- Serbo, o Croata.

- Onde é que ele já trabalhou?

- Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente. Não aprovou porque o rei dormiu.

- Não sei...

- Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.

- Mandem buscá-lo.

Serbo, o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária. Foi chamado com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao Procurador Real, com seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e entusiasmado.

- O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.

- Tudo. Só não engulo espada.

- Imitações?

- Faço uma galinha imitando um homem.

- Isso é diferente...

- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. Com bom gosto, é claro.

- Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se agradasse o Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida e um canto só seu no canil. Antes de começar, quis saber:

- Há algum assunto proibido?

- Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.

- Posso fazer piada sobre tudo?

- Pode.

- A cara do Rei? O cavalo do Rei?

- Tudo.

- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?

- Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na cara. O rei só não gosta de sutileza.

- Como, sutileza?

- Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.

Serbo, o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou.

- Seria uma pena. Somos muito ligados...

- Outra coisa – disse o Procurador Real.

- O que?

- Não fale mal de arqueiros.

- Arqueiros?

- O Rei pertence à Excelsa Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite piada sobre arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora vá se preparar para a sua primeira apresentação.

O bobo saiu enumerando nos dedos, para não esquecer, as três coisas proibidas. Papada, sutileza, arqueiros. Papada, sutileza, arqueiros...

No começo da apresentação de estreia de Serbo, o Croata, houve um momento difícil. Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: “Se o erro de um bobo é bobeada, o erro de um Papa é...” A Rainha ficou tesa no trono e o Rei quase levantou. Mas o bobo completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados. O resto da apresentação foi um sucesso. Nunca o Rei foi tão insultado.

O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um. Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei dava gargalhadas. Todos davam gargalhadas.

- O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.

- Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes de dizerem qualquer coisa.

Mais risadas.

- O povo quer ver sua caveira, majestade.

- O que?

- Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá muito.

- Ah...

- Majestade – continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau – responda se puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?

O Rei ficou sério de repente. Chamou o guarda e ordenou:

- Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.

Para o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra, estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:

- Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?

- Sabia.

- Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.

O Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:

- Eu disse que não era para ser sutil...

- Mas o que foi que eu fiz?

- Criticou os arqueiros.

- Como? Eu ia falar em bacalhau!

- Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.

O bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só quando o Procurador Real já estava saindo pela porta da masmorra é que ele se lembrou de perguntar:

- E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?

Mas era tarde. A porta se fechou.