"Havemos de favorecer e ajudar aos necessitados e desvalidos. Hás de saber, Sancho, que este, que vem pela nossa frente, o capitaneia o grande Imperador Alifanfarrão, senhor da grande Trapobana; e estoutro, que marcha por trás das minhas costas, é o do seu inimigo el-rei dos garamantes Pentapolim do Arremangado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço direito nu. Este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está enamorado da filha de Pentapolim. Seu pai não quer dá-la ao rei pagão”.
quarta-feira, 29 de maio de 2013
segunda-feira, 20 de maio de 2013
Reflexões Grundrissianas
Como forma universal da riqueza, o capital se
diferencia de si mesmo apenas do ponto de vista quantitativo, ou seja, do ponto
de vista de o sujeito ter mais ou menos capital – quando se é capitalista – ou
mais ou menos salário – quando se é trabalhador assalariado. O aspecto qualitativo
da riqueza social – o conjunto de valores de uso – importa, na esfera econômica,
apenas como veículo de valor. É por isso que, sob o modo de produção
capitalista, a forma social da riqueza é sempre impelida, por sua própria natureza, para além
de seus limites imediatos: o horizonte da ampliação do valor tende virtualmente ao infinito. Somente por conta de
sua natureza abstrata é que a forma social da riqueza capitalista – o valor –
subordina progressivamente todas as atividades humanas a seus domínios. Marx
lembra de acontecimentos do Império Romano, afirmando que a riqueza desfrutável “aparece
como dissipação ilimitada, dissipação que procura igualmente elevar a fruição à
imaginária ilimitabilidade devorando salada de pérolas” (Grundrisse, p. 210). Sob as condições de produção capitalistas, o valor atinge a sua forma mais desenvolvida. Assim,
ao subordinar os produtos do trabalho que satisfazem necessidades que vão do “estômago
à fantasia” à lógica auto-expansiva do valor, o caráter mercantil das coisas (especialmente, da força de trabalho) e a sua
dinâmica acabam por impor determinações a todos os âmbitos, digamos, “extra-econômicos” da vida social.
O
significado social da “fruição imaginária ilimitada” a que Marx alude se
referindo ao Império Romano é extremamente atual aos nossos tempos. Este significado,
fundado na impressão de virtual inesgotabilidade da riqueza, acaba sendo
internalizado pelos sujeitos, passando a compor os "instrumentos psicológicos" (Vigotski)
que serão mobilizados em nossas consciências no planejamento de nossas
atividades diárias. As necessidades a serem satisfeitas pelos sujeitos passam a
ser elaboradas em termos de “fruição imaginária inesgotável”, o que significa,
por exemplo, que a compra, a posse e o uso de determinada mercadoria satisfaz
apenas por um instante fugaz, uma vez que a subjetividade, mal se encontrando com o objeto da necessidade anterior, já está mobilizada para
o próximo objeto de desejo. Em termos individuais, a “dissipação ilimitada” é o modo de
manifestação de uma subjetividade ideologicamente moldada para lubrificar as
engrenagens invisíveis dos mecanismos de auto-valorização do valor, seja mediante a intensificação do trabalho ("trabalhando mais, eu ganho mais, eu compro mais"), seja na qualidade de consumidores
compulsivos em busca de uma vida hedonista, que, contudo é realmente impossível.
sexta-feira, 17 de maio de 2013
"BOBOS I", de Luís Fernando Veríssimo
O
bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho – o Rei não entendera uma
piada e mandara executá-lo – e o posto estava vago. O Procurador Real foi
encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se com seus assessores para fazer
um levantamento do mercado de bobos.
-
Quem é que está disponível?
-
Bem... Tem o Gros.
-
Ele não estava com o rei da Saxônia?
-
Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência e ele estava
se repetindo.
-
Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?
-
Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino mais
divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.
-
E o velho Plim?
-
Ultrapassado. Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém mais aguenta.
-
Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.
-
Quem?
-
Serbo, o Croata.
-
Onde é que ele já trabalhou?
-
Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente. Não aprovou
porque o rei dormiu.
-
Não sei...
-
Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.
-
Mandem buscá-lo.
Serbo,
o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária. Foi chamado
com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao Procurador Real, com
seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e entusiasmado.
-
O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.
-
Tudo. Só não engulo espada.
-
Imitações?
-
Faço uma galinha imitando um homem.
-
Isso é diferente...
-
Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. Com bom gosto,
é claro.
-
Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se agradasse o
Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida e um canto só seu no
canil. Antes de começar, quis saber:
-
Há algum assunto proibido?
-
Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.
-
Posso fazer piada sobre tudo?
-
Pode.
-
A cara do Rei? O cavalo do Rei?
-
Tudo.
-
Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?
-
Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na cara. O rei
só não gosta de sutileza.
-
Como, sutileza?
-
Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.
Serbo,
o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou.
-
Seria uma pena. Somos muito ligados...
-
Outra coisa – disse o Procurador Real.
-
O que?
-
Não fale mal de arqueiros.
-
Arqueiros?
-
O Rei pertence à Excelsa Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite piada sobre
arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora vá se preparar para a sua primeira
apresentação.
O
bobo saiu enumerando nos dedos, para não esquecer, as três coisas proibidas. Papada,
sutileza, arqueiros. Papada, sutileza, arqueiros...
No
começo da apresentação de estreia de Serbo, o Croata, houve um momento difícil.
Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: “Se o erro de um bobo é
bobeada, o erro de um Papa é...” A Rainha ficou tesa no trono e o Rei quase
levantou. Mas o bobo completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados. O resto
da apresentação foi um sucesso. Nunca o Rei foi tão insultado.
O
bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um. Criticou as
orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei dava
gargalhadas. Todos davam gargalhadas.
-
O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.
-
Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes de dizerem
qualquer coisa.
Mais
risadas.
-
O povo quer ver sua caveira, majestade.
-
O que?
-
Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá muito.
-
Ah...
-
Majestade – continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada safada com cem variações picarescas em
torno do bacalhau – responda se puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?
O
Rei ficou sério de repente. Chamou o guarda e ordenou:
-
Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.
Para
o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra, estupefato e
arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:
-
Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?
-
Sabia.
-
Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que respeitar
as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.
O
Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:
-
Eu disse que não era para ser sutil...
-
Mas o que foi que eu fiz?
-
Criticou os arqueiros.
-
Como? Eu ia falar em bacalhau!
-
Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.
O
bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só quando o
Procurador Real já estava saindo pela porta da masmorra é que ele se lembrou de
perguntar:
-
E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?
Mas
era tarde. A porta se fechou.
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