quarta-feira, 9 de março de 2011

Estou relendo: "Caim" de José Saramago

"O frio da madrugada fê-lo acordar. Estendeu a mão para apalpar a túnica, sentiu que ainda havia nela um resto de humidade, mas, apesar disso, decidiu-se vesti-la, acabaria de secar no corpo. Não teve sonhos nem pesadelos, dormiu como se supõe que deverá dormir uma pedra, sem consciência, sem responsabilidade, sem culpa, porém, ao acordar, à primeira luz da manhã, as suas palavras foram, Matei o meu irmão. Se os tempos fossem outros, talvez tivesse chorado, talvez se tivesse desesperado, talvez tivesse dado punhadas no peito e na cabeça, mas sendo as coisas como o são, praticamente o mundo só agora foi inaugurado, faltam-nos ainda muitas palavras para que comecemos a tentar dizer quem somos e nem sempre daremos com as que melhor o expliquem, contentou-se com repetir as que havia dito até que deixaram de significar e não foram mais que uma série de sons inconexos, uns balbuceios sem sentido. Foi então que percebeu que afinal havia sonhado, não um sonho precisamente, mas uma imagem, a sua, regressando a casa e encontrando o irmão no vão da porta, à sua espera. Assim o recordará durante toda a vida com se tivesse feito as pazes com o seu crime e não houvesse mais remorso que sofrer" (p. 42).