Kika Seixas, a única ex-mulher de Raul Seixas que mantém ligação direta com a obra do artista, revelou em entrevista feita em sua casa, no Rio, detalhes da vida a dois nesse casamento que durou cinco anos.
Apontada por alguns inimigos como "aproveitadora" do legado do ex-marido, dá de ombros. Defende seu trabalho como fundamental para que a imagem de Raul se mantenha viva.
Kika conheceu Raul com 27 anos, quando, segundo ela mesma, era "linda e maravilhosa" e mantinha um relacionamento com o então chefão da Warner no Brasil, André Midani. Largou-o por Raul, com quem acabou tendo uma filha, Vivian, hoje com 18 anos. Passados cinco anos, deixou-o também: "Ele começou a cheirar éter, aí foi demais". Atualmente casada com João Carlos de Paranaguá, produtor, com quem mantém excelente relacionamento, Kika não esqueceu de Raul. "Ele foi e sempre continuará sendo importante para mim. Até por isso continuarei trabalhando pela sua obra."
A ingenuidade
"Ele vivia 24 horas o artista Raul Seixas. Não tinha um distanciamento, o que até criava problemas. Dormia e acordava de botas e óculos escuros. Essa ingenuidade era um negócio muito genuíno dele, talvez até um pouco demais da conta. Os artistas atuais têm um distanciamento maior, acho que foi aí que ele se perdeu..."
A Sociedade Alternativa
"Gozado, não sei se o Raul tinha dimensão do que era isso. Ele era apolítico, então, sinceramente, não sei o que pretendia com isso, acho que era só um sonho. Até hoje, pessoas me perguntam isso, o que é a Cidade das Estrelas, se ela existiu. Acho que a Sociedade Alternativa ficou sendo mais uma pessoa, mais um ponto de vista do público dele do que dele mesmo. Eu me lembro que uma vez magoei muito o Raul, quando disse: 'Isso aí é um papo completamente impossível, que Sociedade Alternativa é essa, cara? Como é que você quer criar algo, em que bases, o que é isso, que palhaçada é essa? Sociedade Alternativa porra nenhuma, você não é capaz de gerir a sua própria vida, a sua família'. Ele ficou arrasado naquele dia, deprimido."
Últimos momentos
"Ele morreu cheirando e bebendo. No último fim de semana tinha cheirado e bebido e, como nos finais de semana a empregada não ficava em casa, e era ela quem o pressionava para tomar as injeções de insulina, não resistiu. Cara, o Raul detestava aquelas injeções de insulina. Não há nada menos rock'n'roll que o cara ter de se medicar, entendeu? Raul detestava isso e a empregada, a Dalva, enchia tanto o saco dele que ele acabava se aplicando. Foi opção dele, entendeu? Inclusive o Marcelo Nova, no final, montou um esquema de segurança para proteger o Raul e ele detestava aquilo. Dizia: 'Poxa, você viu os seguranças, os trogloditas que estão lá fora, uns caras agressivos pra caramba!' Mas era tudo para não deixar ninguém chegar perto do Raul e dar cocaína ou bebida pra ele, mas ele ficava arrasado. Era aquilo que ele queria. O fim da vida de Raul foi uma tragédia. Raul estava feio, gordo, não tomava mais banho, não andava, se arrastava, não cantava mais, estava sem dentes. Olha, no final da vida, na intimidade, eu vou te contar, ele me chamava para dormir e eu ia lá, o Raul fazia xixi nas calças, o álcool já tinha consumido tudo. Ele não comia, era uma tragédia, eu olhava para a vida de Raul e, de certa forma, dei graças a Deus por ele ter morrido, eu não sei o que seria a vida dele se estivesse vivo."
O público e a imprensa
"Quando faço o Baú do Raul (show promovido por ela) é óbvio e lógico que vem um monte de coroas e tal, mas quem mais vem é a garotada. E ainda tem um pessoal que 'recebe' uns santos e diz que eu estou incomodando a alma do Raul. Que ele precisa descansar, que preciso parar de fazer shows etc. agora mesmo me mandaram um livro que fala do roqueiro do além. É um escândalo, bicho. O cara não diz que é o Raul, mas dá a entender que é o Raul. Mas não é, porra nenhuma, não tem Raul nenhum ali, é uma coisa estranhíssima. O tal do roqueiro do além não tem nada a ver com o Raul. O verdadeiro Raul tá adorando tudo isso que a gente faz... Quem criou o mito foi o público, o povo. Eles que trouxeram o Raul de volta, porque os jornalistas, a mídia, estava meio assim porque ele tinha criado uma tarja de inconseqüente, alcoólatra, viciado, irresponsável e, quando ele morreu, a mídia preferiu ignorá-lo, como já vinha fazendo no fim da vida dele e, mesmo assim, vendia as 100.000 cópias dele. Mas eles tiveram de dar a mão à palmatória até porque no enterro, na Bahia, eram 5.000 pessoas, uma loucura. Uma hora o caixão fugiu, foi indo embora e aí dona Maria Eugênia falou: 'Deixe, deixe que levem o meu filho, eles que enterrem meu filho'. Quando fomos ver, o caixão já estava duzentos metros à frente, sendo enterrado pelo povo, pelo público dele. Em São Paulo, foi a mesma coisa. O público só deixou o funeral sair quando veio o corpo de bombeiros.
Encontro com John Lennon
"Essas histórias são fantasias, fantasias."
Sempre ligado
"Ele sempre bebeu. Dizia que desde os doze anos tomava uns porres em um lugar chamado Cantinho da Música. Ele sempre teve muita dificuldade de conviver com a realidade, ficava sempre deprimido, tomava Diempax e outras bolas. A realidade para ele era demais, demais mesmo. Ele também deixava todas as luzes da casa acesas porque tinha horror a dormir. Estava sempre ligado, bicho. Achava perda de tempo dormir. Dormia demais quando estava deprimido, podia passar o dia inteiro dormindo, entendeu? Mas dormia pouco. Tipo, quando dormia à meia-noite, às 4 da manhã estava feliz da vida, acordado. Aí, pegava a Vivian e trazia para eu dar de mamar. Estava sempre acordado."
A relação com Paulo Coelho
"Eu vivi seis anos com o Raul, ele sentia falta, digamos assim, daquele período de criatividade intensa, o Paulo é um homem inteligente, mas o Raul fez questão de criar um distanciamento mesmo do Paulo, eu não sei por que e também não gosto muito de falar sobre isso, acho que isso acaba virando fofoca."
As drogas
"Ninguém consegue viver com o álcool e as drogas o dia inteiro e depois, à noite, ir fazer show ou gravar um disco. Quando ele ia gravar, às vezes ficávamos um mês no estúdio. Ele se trancafiava cheirando cocaína durante cinco dias seguidos e no sexto, sétimo dia ia para o estúdio. Qual é o ser humano que consegue isso? E o fato é que realmente saíam obras-primas, saiu Gita, Aluga-se, saíram todas, mas no sétimo dia, bicho, alguma coisa ia ficar ruim, ou o pâncreas dele ia pras cucuias, como foi. Mas tudo por conta da arte, nunca vi o Raul cheirando ou bebendo para bater um papinho ou ficar doidão, não, o negócio era compor que nem um louco..."
O Rock das 'Aranha'
"Estávamos em Miguel Pereira com o Cláudio Roberto (um dos mais importantes parceiros de Raul). Estava, ele, a Ângela, mulher de Cláudio, e nós. Fomos passar o fim de semana com eles, coisa de amigo mesmo. Mas bastava se encontrarem que os caras compunham. Nesse final de semana, eles fizeram Ângela, obra-prima, para mim e para a Ângela, porque eram duas Ângelas. Fomos dormir e no dia seguinte, quando eu e Ângela acordamos, tinha o Rock das 'Aranha' pronto. A Ângela, caretérrima, achou um horror a música. Eu de cara achei genial. Foi assim a história."
O lado machão
"O Raul tinha horror a lésbica, tinha horror a viado, nesse sentido era a pessoa mais careta que eu vi na vida. Boiola não podia nem chegar perto, o Raul ficava incomodado, saía da sala, ficava piscando, fazendo trejeitos. Por isso digo que o Rock das 'Aranha' foi pura sacanagem, só. Por isso, essa fofoca que rolou por conta de o Paulo Coelho ter dito que tentou transar com um outro homem duas vezes não tem nada com o Raul. Isso é sacanagem. É foda, cara: até o João, meu marido, me acordou quando saiu essa matéria, dizendo: 'Kika, o Raul era viado, tá escrito'. Eu disse: 'Não fala bobeira, João. Ele era porreta'. 'É viado, é viado, tá escrito aqui!', ele insistiu. Mas eu garanto, não foi com ele que o Paulo teve essa relação."
A dependência química
"Ele acordava cedo, ia para o bar e tomava vodca com Coca-Cola. Isso às 9 horas da manhã, ficava um pouco no bar, e quando dava 11 horas voltava para casa, tomava o café tradicional, depois ia para o bar novamente beliscar uma língua ou carne assada. Voltava ao meio-dia, ouvia som e caía duro na cama. À tarde precisava de alguma coisa na agenda para fazer, para preencher o dia, senão descambava, mas para levantar tinha de ter o combustível."
As parcerias
"Eu não sou burra, bicho, sou uma mulher inteligente. De repente, o Raul dizia 'vamos compor' e eu topava. Ele dava uma palavra, eu outra, e aí rolava a frase. Mas, muitas vezes deixei de botar o meu nome em parcerias porque achava que ficaria ruim para o Raul ter mais de uma parceria, deixei de ganhar dinheiro. Se tivesse colocado, hoje teria direito aos direitos autorais. Achei que ficaria melhor para a imagem dele. Aluga-se é minha, Abre-te Sésamo é minha, Só pra Variar é minha; eu estava lá nesses momentos. Mas achava que não devia deixar o público saber que foi feito por outra pessoa, mais uma mulher, mais um parceiro. Achava que tinha de preservar o Raul, bicho... eu amo o Raul. Ele até me falava: 'Kika, a gente tá deixando de ganhar dinheiro. Se você diz que a música é só minha e de outro cara, a gente ganha metade e metade. Se você disser que a música é de Raul, Kika e o outro, vai ficar um terço pra cada um'."
Os direitos autorais
"Hoje ele rende U$ 120.000,00, cara, 120.000 dólares para as herdeiras por ano. Quando peguei para tocar, elas só recebiam 50.000 dólares, por isso acho que ajudei bastante. O Raul é a terceira maior execução do Brasil. Desde botecos até os shows. É, bicho, depois que comecei a assumir esse trabalho gratuito, de gerenciar o trabalho do Raul, as coisas começaram a ser pagas direitinho. E isso não reverte nada para a minha firma, nenhum tostão, só a minha filha que recebe. E eu quero receber, sim, 5, 10 ou 15 porcento como agenciadora disso. As outras filhas dele não sabem nada do que acontece, os advogados delas não sabem nada, só recebem. Só recolhem o que é depositado. Por isso vou entrar na Justiça pedindo o que é meu de direito. Isso só acontece porque as herdeiras não estão sabendo o que está ocorrendo, porque os advogados não têm interesse de passar para elas que existe uma pessoa que trabalha e que vive Raul, e que trabalha para o nome Raul, senão a percentagem deles ia ser provavelmente diminuída. Se tem uma pessoa que realmente trabalha Raul Seixas, divulga, então por que os advogados ganham 9 porcento? Como eles não querem diminuir essa soma, então fui para a Justiça, estou botando todo mundo na Justiça, inclusive minha filha."
Material inédito
"Sim, tenho, sem dúvida, porque compro coisas quando sei que são inéditas, porque quero deixar coisas para a minha filha poder ter algum retorno no futuro. Por isso não fiz um CD-ROM nem um filme. Estou guardando isso para a Vivi (Vivian)."
Frágil e forte
"Ele era extremamente frágil, de um lado, e corajoso, do outro. Ficou quatro meses entubado no hospital Albert Einstein e nunca vi esse homem reclamar. Nem dar um ai. Ele não comia, só tomava injeção. Quatro meses deitado numa cama. É isso que eu digo, nessas horas ele era uma força gigantesca. Passou dois anos sem gravar e nunca vi Raul dizendo: 'que merda a minha vida'. Ele foi uma fortaleza até mesmo no final da vida. Mesmo do jeito que ele estava teve coragem de tentar me seduzir. Precisa ser muito homem pra fazer isso na situação em que ele já se encontrava."
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