Mas
Hegel começa de fato com a multiplicidade contingente? Ou será que, ao
contrário, oferecer uma “terceira via”, através do ponto da não decisão entre
desejo e pulsão? Na verdade, ele não começa com o Ser e depois deduz a
multiplicidade dos existentes (seres-aí), que surge como resultado do primeiro
trio, ou melhor, do quarteto ser-nada-devir-existente? Aqui, devemos ter em
mente o importante fato de que, quando escreve sobre a passagem do Ser ao Nada,
Hegel recorre ao pretérito: o Ser não passa ao Nada, ele sempre-já passou ao Nada em assim por diante. A primeira tríade da
Lógica não é uma tríade dialética, mas uma evocação retroativa de um tipo de
passado virtual sóbrio, de algo que nunca passa, pois sempre-já passou: o
começo efetivo, o primeiro ente que está “realmente aqui” é a multiplicidade
contingente dos seres-aí (existentes). Em outras palavras, não existe tensão
entre Ser e Nada que gere a incessante passagem de um ao Outro: em si mesmos,
antes da dialética propriamente dita, Ser e Nada são direta e imediatamente o
mesmo, são indiscerníveis; sua tensão (a tensão entre forma e conteúdo) só
aparece retroativamente, se olharmos para eles a partir da perspectiva da
dialética propriamente dita.
Tal ontologia
do nãp-Todo impõe uma contingência radical: além de não existir nenhuma lei que
sustente a necessidade, toda lei é em si contingente – pode ser subvertida a
qualquer momento. Isso equivale a uma suspensão do princípio da razão suficiente:
uma suspensão não só epistemológica, mas também ontológica. Ou seja, não se
trata apenas de jamais conhecer a rede inteira de determinações causais; essa
cadeia é, em si, “inconclusiva”, o que abre espaço para uma contingência
imanente do devir – o que define o materialismo radical é esse caos do devir não
sujeito a nenhuma ordem preexistente. Seguindo essa linha, Meillassoux propõe
uma distinção precisa entre contingência
e acaso, associando-a à distinção
entre virtualidade e potencialidade:
“Potencialidades são
os casos não efetivados de um conjunto indexado de possibilidades sob a
condição de uma dada lei (aleatória ou não). Acaso é cada efetivação de uma potencialidade para a qual não há
instância unívoca de determinação tendo como base as condições iniciais dadas. Logo,
chamarei de contingência a
propriedade de um conjunto indexado de casos (não de um caso pertencente a um
conjunto indexado) de não ser ele mesmo um caso de conjunto de casos, e virtualidade a propriedade de todo
conjunto de casos de surgir dentro de um devir que não é dominado por nenhuma
totalidade de possíveis pré-constituída”.
Um
caso claro de potencialidade é o arremesso de um dado, por meio do qual o que
já era um caso possível torna-se um caso real: foi determinado pela ordem
preexistente de possibilidades que há em uma em seis chances de o resultado ser
o número seis; assim, quando o número seis aparece de fato, um possível
preexistente é realizado. A virtualidade, ao contrário, designa uma situação em
que não se pode totalizar o conjunto de possíveis de modo que surja algo novo,
realiza-se um caso para o não havia lugar no conjunto preexistente de
possíveis: “o tempo o possível no momento exato em que o faz passar, produz o
possível assim como o real, insere-se no próprio arremesso dos dados para gerar
um sétimo caso, a princípio imprevisível, que rompe a fixidez das
potencialidades”. Notemos aqui a formulação precisa de Meillassoux: o Novo
surge quando aparece um X que não efetiva apenas uma possibilidade existente,
mas cuja efetivação cria
(retrospectivamente abre) sua própria possibilidade:
“Se
sustentamos que o devir não só é capaz de produzir casos na base de um universo
pré-dado de casos, devemos entender então que, como resultado, tais casos irrompem,
em sentido estrito, do nada, posto
que nenhuma estrutura os contém enquanto eternas potencialidades antes de seu
surgimento: nós, portanto, tornamos a
irrupção ex nihilo o próprio conceito
de uma temporalidade entregue a sua pura imanência”.
Dessa
maneira, obtemos a definição precisa do tempo em sua irredutibilidade: tempo é
só o “espaço” da futura realização de possibilidades, mas o “espaço” do
surgimento de algo radicalmente novo, fora do escopo das possibilidades
inscritas em qualquer matriz atemporal. Esse surgimento de um fenômeno ex nihilo, não plenamente coberto pela
cadeia suficiente de razões, não é mais – como na metafísica tradicional – um signo
da intervenção direta de um poder sobrenatural (Deus) na natureza, mas, ao
contrário, um signo da inexistência
de Deus, ou seja, é uma prova de que a natureza é não-Toda, não “coberta” por
nenhuma Ordem ou Poder transcendentes que a regulem. Um “milagre” (cuja
definição formal é o surgimento de algo não coberto pela rede causal existente)
é, portanto, convertido em um conceito materialista:
“Todo ´milagre´, portanto, traz a
manifestação da inexistência de Deus, na medida em que cada ruptura radical
do presente em relação ao passado torna-se a manifestação da ausência de
qualquer ordem capaz de sobrepujar o caótico poder do devir”.