sábado, 30 de março de 2013

"como um coto", de Paulo Leminski



como um coto caro ao roto
incrédulo tiago
toco as chagas
que me chegam
do passado
mutilado

toco o nada
aquele nada que não para
aquele agora nada
que tinha
a minha cara

nada não
que nada nenhum
declara tamanha danação

segunda-feira, 25 de março de 2013

Estou Lendo "Menos que Nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético", de Slavoj Zizek.

Mas Hegel começa de fato com a multiplicidade contingente? Ou será que, ao contrário, oferecer uma “terceira via”, através do ponto da não decisão entre desejo e pulsão? Na verdade, ele não começa com o Ser e depois deduz a multiplicidade dos existentes (seres-aí), que surge como resultado do primeiro trio, ou melhor, do quarteto ser-nada-devir-existente? Aqui, devemos ter em mente o importante fato de que, quando escreve sobre a passagem do Ser ao Nada, Hegel recorre ao pretérito: o Ser não passa ao Nada, ele sempre-já passou ao Nada em assim por diante. A primeira tríade da Lógica não é uma tríade dialética, mas uma evocação retroativa de um tipo de passado virtual sóbrio, de algo que nunca passa, pois sempre-já passou: o começo efetivo, o primeiro ente que está “realmente aqui” é a multiplicidade contingente dos seres-aí (existentes). Em outras palavras, não existe tensão entre Ser e Nada que gere a incessante passagem de um ao Outro: em si mesmos, antes da dialética propriamente dita, Ser e Nada são direta e imediatamente o mesmo, são indiscerníveis; sua tensão (a tensão entre forma e conteúdo) só aparece retroativamente, se olharmos para eles a partir da perspectiva da dialética propriamente dita. 

Tal ontologia do nãp-Todo impõe uma contingência radical: além de não existir nenhuma lei que sustente a necessidade, toda lei é em si contingente – pode ser subvertida a qualquer momento. Isso equivale a uma suspensão do princípio da razão suficiente: uma suspensão não só epistemológica, mas também ontológica. Ou seja, não se trata apenas de jamais conhecer a rede inteira de determinações causais; essa cadeia é, em si, “inconclusiva”, o que abre espaço para uma contingência imanente do devir – o que define o materialismo radical é esse caos do devir não sujeito a nenhuma ordem preexistente. Seguindo essa linha, Meillassoux propõe uma distinção precisa entre contingência e acaso, associando-a à distinção entre virtualidade e potencialidade

“Potencialidades são os casos não efetivados de um conjunto indexado de possibilidades sob a condição de uma dada lei (aleatória ou não). Acaso é cada efetivação de uma potencialidade para a qual não há instância unívoca de determinação tendo como base as condições iniciais dadas. Logo, chamarei de contingência a propriedade de um conjunto indexado de casos (não de um caso pertencente a um conjunto indexado) de não ser ele mesmo um caso de conjunto de casos, e virtualidade a propriedade de todo conjunto de casos de surgir dentro de um devir que não é dominado por nenhuma totalidade de possíveis pré-constituída”.

Um caso claro de potencialidade é o arremesso de um dado, por meio do qual o que já era um caso possível torna-se um caso real: foi determinado pela ordem preexistente de possibilidades que há em uma em seis chances de o resultado ser o número seis; assim, quando o número seis aparece de fato, um possível preexistente é realizado. A virtualidade, ao contrário, designa uma situação em que não se pode totalizar o conjunto de possíveis de modo que surja algo novo, realiza-se um caso para o não havia lugar no conjunto preexistente de possíveis: “o tempo o possível no momento exato em que o faz passar, produz o possível assim como o real, insere-se no próprio arremesso dos dados para gerar um sétimo caso, a princípio imprevisível, que rompe a fixidez das potencialidades”. Notemos aqui a formulação precisa de Meillassoux: o Novo surge quando aparece um X que não efetiva apenas uma possibilidade existente, mas cuja efetivação cria (retrospectivamente abre) sua própria possibilidade

“Se sustentamos que o devir não só é capaz de produzir casos na base de um universo pré-dado de casos, devemos entender então que, como resultado, tais casos irrompem, em sentido estrito, do nada, posto que nenhuma estrutura os contém enquanto eternas potencialidades antes de seu surgimento: nós, portanto, tornamos a irrupção ex nihilo o próprio conceito de uma temporalidade entregue a sua pura imanência”.

Dessa maneira, obtemos a definição precisa do tempo em sua irredutibilidade: tempo é só o “espaço” da futura realização de possibilidades, mas o “espaço” do surgimento de algo radicalmente novo, fora do escopo das possibilidades inscritas em qualquer matriz atemporal. Esse surgimento de um fenômeno ex nihilo, não plenamente coberto pela cadeia suficiente de razões, não é mais – como na metafísica tradicional – um signo da intervenção direta de um poder sobrenatural (Deus) na natureza, mas, ao contrário, um signo da inexistência de Deus, ou seja, é uma prova de que a natureza é não-Toda, não “coberta” por nenhuma Ordem ou Poder transcendentes que a regulem. Um “milagre” (cuja definição formal é o surgimento de algo não coberto pela rede causal existente) é, portanto, convertido em um conceito materialista: “Todo ´milagre´, portanto, traz a manifestação da inexistência de Deus, na medida em que cada ruptura radical do presente em relação ao passado torna-se a manifestação da ausência de qualquer ordem capaz de sobrepujar o caótico poder do devir”.


ZIZEK, Slavoj. Menos QueNada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 69-71.

terça-feira, 19 de março de 2013

"Os Comunistas", de Pablo Neruda

O tempo tempera as reflexões e os sentidos. Salpica de arrebatamentos a calma mais controlada e tranquiliza os arroubos mais inseguros. Vemos o passado com os olhos de quem reconhece sua  gênese ou de quem de soslaio meio envergonhado diz "this is the end... my only friend, the end" e fecha, assim, o futuro?

Sem apoteose, recolho o Neruda com o carinho e a sensação pesada de quem encontra a foto do velho avô. Saudades de um tempo que nunca vivi. 

Às vezes, entendo porque o romantismo é tão sedutor.


OS COMUNISTAS

Passaram-se alguns anos desde que ingressei no partido...
Estou contente...
Os comunistas formam uma boa família...
Têm a pele curtida e o coração moderado...
Por toda parte recebem golpes...
Golpes exclusivos para eles...
Vivam os espíritas, os monarquistas, os anormais, os criminosos de todas as espécies...
Viva a filosofia com muita fumaça e pouco fogo... Viva o cão que ladra e que morde, vivam os astrólogos libidinosos, viva a pornografia, viva o cinismo, viva o camarão, viva todo o mundo, menos os comunistas...
Vivam os cintos de castidade, vivam os conservadores que não lavam os pés ideológicos há quinhentos anos...
Vivam os piolhos das populações miseráveis, viva a fossa comum gratuita, viva o anarco-capitalismo, viva Rilke, viva André Gide com seu coridonzinho, viva qualquer misticismo...
Está tudo bem...
Todos são heróicos...
Todos os jornais devem sair...
Todos podem ser publicados, menos os comunistas...
Todos os políticos devem entrar em São Domingos sem algemas...
Todos devem celebrar a morte do sanguinário, de Trujillo, menos os que mais duramente o combateram...
Viva o carnaval, os últimos dias de carnaval...
Há disfarces para todos...
Disfarces de idealista cristão, disfarces de extrema esquerda, disfarces de damas beneficentes e de matronas caritativas...
Mas cuidado: não deixem entrar os comunistas... Fechem bem a porta...
Não se enganem...
Eles não têm direito a nada...
Preocupemo-nos com o subjetivo, com a essência do homem, com a essência da essência...
Assim estaremos todos contentes...
Temos liberdade...
Que grande coisa é a liberdade!...
Eles não a respeitam, não a conhecem...
A liberdade para se preocupar com a essência... Com o essencial da essência...
Assim têm passado os últimos anos...
Passou o jazz, chegou o soul, naufragamos nos postulados da pintura abstrata, a guerra nos abalou e nos matou...
Tudo permanecia o mesmo...
Ou não permanecia?...
Depois de tantos discursos sobre o espírito e de tantas pauladas na cabeça, alguma coisa ia mal... Muito mal...
Os cálculos tinham falhado...
Os povos se organizavam...
Continuavam as guerrilhas e as greves...
Cuba e o Chile se tornavam independentes...
Muitos homens e mulheres cantavam a Internacional...
Que estranho...
Que desanimador...
Agora cantam-na em chinês, em búlgaro, em espanhol da América...
É preciso tomar medidas urgentes...
É preciso bani-lo...
É preciso falar mais do espírito...
Exaltar mais o mundo livre...
É preciso dar mais pauladas...
É preciso dar mais dólares...
Isto não pode continuar...
Entre a liberdade das pauladas e o medo de Germán Arciniegas...
E agora Cuba... Em nosso próprio hemisfério, na metade de nossa maçã, estes barbudos com a mesma canção...
E para que nos serve Cristo?...
Para que servem os padres?...
Já não se pode confiar em ninguém...
Nem mesmo nos padres. Não vêem nossos pontos de vista...
Não vêem como baixam nossas ações na Bolsa... Enquanto isso sobem os homens pelo sistema solar...
Deixam pegadas de sapatos na Lua...
Tudo luta por mudanças, menos os velhos sistemas...
A vida dos velhos sistemas nasceu de imensas teias de aranha medievais...
Teias de aranha mais duras do que os ferros das máquinas...
No entanto, há gente que acredita numa mudança, que tem posto em prática a mudança, que tem feito triunfar a mudança, que tem feito florescer a mudança...
Caramba!...
A primavera é inexorável!

quarta-feira, 13 de março de 2013

Tradução - "Desigualdade Econômica nos EUA"

Dando prosseguimento aos meus exercício de tradução, disponibilizo a tradução e a criação da legenda de um vídeo que, semanas atrás, andou sendo replicado quase como um viral pela internet. Trata-se de um vídeo, cujo título original é "Wealth Inequality in America". Não havia ainda, para ele, uma versão legendada em português. Por isso, decidi arriscar-me também nestas paragens.

O vídeo demonstra como atualmente se encontra distribuída  riqueza nos EUA.

A partir de uma pesquisa elaborada por um professor de Harvard, aquilo que os estadunidenses acham que seja a estrutura distributiva da sua riqueza nacional é comparado com aquilo que eles acreditam ser uma distribuição ideal e, posteriormente, estas duas são comparadas com a realidade.

As diferenças são impressionantes!

Para além dos limites existentes nas conclusões dos autores a respeito do socialismo - derivados, muito provavelmente, da perspectiva política do movimento "Occupy" -, o vídeo é muito útil ao atualizar os dados sobre o estado atual da desigualdade econômica na maior potência capitalista do mundo.

Trata-se da minha primeira experiência com a produção de legendas. Espero que o resultado tenha ficado bom.

Eis o resultado final: 


 

segunda-feira, 4 de março de 2013

Estou Lendo "Grundrisse", de K. Marx


“Considerado desde o ponto de vista dessa diversidade natural, o indivíduo [A] existe como possuidor de um valor de uso para B e B, como possuidor de valor de uso para A. Sob esse aspecto, a diversidade natural os coloca reciprocamente de novo na relação da igualdade. Consequentemente, não são indiferentes um ao outro, mas se completam, se necessitam um do outro, de modo que o indivíduo B, enquanto objetivado na mercadoria, é uma necessidade para o indivíduo A e vice-versa; de modo que não só estão em uma relação de igualdade entre si, mas também em relação social recíproca. Mas isso não é tudo. Que a necessidade de um pode ser satisfeita pelo produto do outro, e vice-versa, que um é capaz de produzir o objeto da necessidade do outro e que cada um se enfrenta com o outro como proprietário do objeto da necessidade do outro, prova que cada um, como ser humano, vai além de sua própria necessidade particular etc. e se comporta um em relação ao outro como ser humano; que sua essência genérica comum é conhecida por todos. (...) Na medida em que agora essa diversidade natural dos indivíduos e das próprias mercadorias (...) constitui o motivo para a integração desses indivíduos, para a sua relação social como trocadores, relação em que são pressupostos e se afirmam como iguais, à determinação da igualdade soma-se a da liberdade. Ainda que o indivíduo A sinta necessidade da mercadoria do indivíduo B, não se apodera dela pela força, nem vice-versa, mas reconhecem-se mutuamente como proprietários, como pessoas cuja vontade impregna suas mercadorias. Em decorrência, aqui entre de imediato o momento jurídico da pessoa e da liberdade, na medida em que está contida na primeira. Nenhum deles se apodera da propriedade do outro pela força. Cada um a cede voluntariamente. Mas isso não é tudo: o indivíduo A serve à necessidade do indivíduo B por meio da mercadoria a somente na medida em que, e porque, o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao outro para servir a si mesmo; cada um serve reciprocamente do outro como seu meio. Ambos os aspectos estão agora presentes na consciência dos dois indivíduos: 1) que cada um só alcança seu objetivo à medida que serve como meio para outro; 2) que cada um só devém meio para outro (ser para outro) como fim em si mesmo (ser para si); 3) que a reciprocidade, segundo a qual cada um é ao mesmo tempo meio e fim, e de fato só alcança seu fim à medida em que devém meio, e só devém meio à medida que se põe como fim em si mesmo; que, portanto, cada um se põe como ser para outro à medida que é ser para si, e que o outro se põe como ser para ele quando é ser para si mesmo – que essa reciprocidade é um fato necessário, pressuposto como condição natural da troca, mas que é, enquanto tal, indiferente para cada um dos dois trocadores, e essa reciprocidade tem interesse para o indivíduo apenas na medida em que satisfaz seu interesse, como interesse que exclui o interesse do outro, sem ligação com ele. O que significa dizer que o interesse comum, que aparece como motivo do ato como um todo, é certamente reconhecido como fato por ambas as partes, mas não é motivo enquanto tal, ao contrário, atua, por assim dizer, por detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do interesse singular contraposto ao do outro. Sob esse último aspecto, o indivíduo pode ter no máximo a consciência reconfortante de que a satisfação de seu interesse singular contraditório é justamente a realização da contradição superada, do interesse social universal. Pelo próprio ato da troca, o indivíduo, cada um dos indivíduos, está refletido em si mesmo como sujeito exclusivo e dominante (determinante) do ato da troca. Com isso, portanto, está posta a completa liberdade do indivíduo: transação voluntária; nenhum violência de parte a parte; posição de si como meio, ou a serviço, unicamente como meio de se pôr como fim em si, como o dominante e o prevalecente; enfim, o interesse egoísta, que não realiza nenhum interesse superior; o outro também é reconhecido e conhecido como sujeito que realiza seu interesse egoísta exatamente da mesma maneira, de modo que ambos sabem que o interesse comum consiste precisamente na troca do interesse egoísta em sua bilateralidade, multilateralidade e autonomização. O interesse universal é justamente a universalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Como ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base; quando desenvolvidas em relações jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em outra potência. E isso também se verifica historicamente. A igualdade e a liberdade nessa extensão são exatamente o oposto da liberdade e igualdade antigas, que não têm justamente o valor de troca desenvolvido como fundamento, mas se extinguem em seu desenvolvimento. Elas pressupõem relações de produção que ainda não haviam se realizado no mundo antigo nem tampouco na Idade Média".