Está bem, está bem. Não foi nada disso. A minha inclinação - ainda que modesta - à bebida não tem relação alguma com uma suposta volta às origens, como se eu tivesse enfim decidido ceder aos chamamentos de uma força genético-cultural latejante, ainda que inerte. Tudo começou, como com muitos de vocês, durante o hedonista período da vida universitária. Foi o fim de antigas crenças e o começo de outras.
Mas não era isso que eu queria dizer. Mesmo porque não era sobre a bebedeira que se trata esta postagem, mas do rastro de destruição que ela deixa no dia anterior: a ressaca. A intenção primeira era simplesmente copiar e colar dois textos sobre este fenômeno, que já foi objeto de interessantes teorias entre os meus durantes longas noites de estudo regadas a cerveja. E eu queria fazê-lo sem preâmbulos. Cedi. Sou um fraco. E um tagarela. Mais precisamente um "digitagarela que escreve", se é que me entendem. Então - aportuguesando o clichê francês (porque não sei escrever o relativo em francês) -, vá lá. Segue abaixo os dois textos. Um é do Veríssimo e o outro é uma letra da Blues Etílicos, banda que, por sinal, ainda não incluí por aqui.
De ressaca
Luís Fernando Veríssimo
Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso coragem. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum prazer ficará sem castigo. Cada porre era um desafio ao céu e às suas fúrias. E elas vinham ― Náusea, Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais ― às golfadas. Hoje, as bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconseqüentes, literalmente.
Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre o cuba-livre e o meu instinto de autopreservação. O cubalibre ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a tontura e o desejo de morte. Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, “nunca mais” dura pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo uma eternidade. Não sei o que o cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem.
Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e duas aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava em casa nem sempre conseguia completar a operação. As vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-Seltzer e ia borbulhando para a cama, quando encontrava a cama.
Mas os métodos variavam. Por exemplo:
Um cálice de azeite antes de começar a beber ― O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber.
Tomar um copo de água entre cada copo de bebida ― O difícil era manter a regularidade. À certa altura, você começava a misturar a água com a bebida, e em proporções cada vez menores. Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada copo de bebida.
Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta ― Para ser tomado no dia seguinte, de jejum. Adicionando vodka ficava um Bloody Mary, mas isto era para mais tarde um pouco.
O sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde dissolvidas em querosene ― Misturava-se tudo num prato pirex forrado com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um algodão na testa e deitava-se com os pés na direção da ilha da Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira.
Uma cerveja bem gelada na hora de acordar ― Por alguma razão, o método mais popular.
Canja ― Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era para tomar, no entanto muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham que ser socorridos às pressas antes do afogamento.
Minha experiência maior é com o cuba-libre, mas conheço outros tipos de ressaca, pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara na noite anterior era paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com uísque falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma harpa guarani e no depósito de instrumentos da boate Catito’s em Assunção.
A pior ressaca era de gim. Na manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo tempo. Abria um e quando abria o outro o primeiro se fechava. Ficava com o ouvido tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São Pedro, em Roma.
Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava correndo no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia.
Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até à cozinha, tentava alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira em cima de você. Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para alcançar a umidade. Era deserdado na hora.
Ressaca de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé, num canto do quarto. Levava meia hora para chegar até à cama porque se esquecera como se caminhava: era pé ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas orelhas e uma clavícula no canto. Olhava para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente humana no teto finalmente se definira. Era o Konrad Adenauer e estava piscando para você.
Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite a eutanásia.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do Universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.
Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada. No dia seguinte estão saudáveis, bem dispostas e fazem até piadas a respeito. De vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em silêncio. Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os companheiros caídos e o nosso heroísmo anônimo. Estivemos no inferno e voltamos, inteiros. Mais ou menos. Um brinde. E um Engov.
Ressaca
(Blues Etílicos)
(Blues Etílicos)
O Sol me acorda e ainda é cedo
Eu fico logo de mau humor
A minha cabeça tá rodando
De onde é que vem esse tambor?
É de manhã, eu tô numa ressaca
Eu me arrasto até o banheiro
(Me sentindo muito mal)
Me sentindo enjoado
Enfio a cara no chuveiro
É nessas horas que eu digo pra mim mesmo:
"Nunca mais eu vou beber."
Mas vem caindo a tardinha,
preparo outra caipirinha.
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